Os servidores públicos e o combate ao coronavírus
Enquanto a sociedade eleva servidores públicos anônimos à condição de heróis, medidas federais reforçam desvalorização do funcionalismo
Rafael Sampaio
atualizado
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Foi apresentado, nesta quinta-feira (30/04), parecer prévio no plano de auxílio aos estados, de autoria do senador Davi Alcolumbre (DEM), no qual se propõe, entre outras medidas, à vedação para concessão de reajuste, contratação e criação de benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, no serviço público em geral.
A medida proposta tem as digitais do ministro Paulo Guedes e foi evidentemente concebida sob o binômio: análise fática sob a exclusiva ótica econômica; e visão preconceituosa de que os servidores públicos são um câncer nacional. Nada de novo no samba de uma nota só do ministro.
Curioso notar, contudo, que é efeito natural da decretação do estado de calamidade o afrouxamento dos limites de gasto do Estado e do manejo de contratações. Afinal, para enfrentar uma situação extraordinária são necessárias medidas céleres e excepcionais.
Paradoxalmente, no entanto, no caso dos servidores públicos, a visão é diametralmente oposta, o que nos leva a questionar a razoabilidade dessa decisão sob o prisma do combate à pandemia.
Inicialmente, importa considerarmos que o cenário atual fez despertar a opinião pública sobre a importância do Estado manter seus serviços essenciais hígidos.
Houve uma quebra de paradigma, no qual indivíduos abastados, acostumados a resolverem suas demandas por meio da contratação de serviços privados, se viram democraticamente obrigados a compartilhar a estrutura do Estado no combate à pandemia.
Pela primeira vez, vimos a sociedade elevar servidores públicos anônimos à condição de heróis. Afinal, é assustador pensar que a contaminação pelo coronavírus, no pico da pandemia, pode significar o falecimento sem atendimento por falta de leito de unidade de terapia intensiva (UTI).
Imaginemos agora ficar sem segurança pública, energia elétrica, água, serviço de limpeza, etc, durante a pandemia. É inegável que seria um caos. Mas talvez o texto proposto no PLP 149/19 possa ser o símbolo do início desse processo de flagelo. Explico.
Conforme amplamente veiculado na imprensa internacional, o alto grau de contaminação de servidores públicos durante o combate da pandemia, especialmente das áreas de saúde e segurança, fez com que os governantes de todo o mundo tomassem medidas excepcionais, conforme as necessidades locais, para manter esses serviços funcionando, tudo dentro da visão de calamidade pública.
Outros países
Nesse sentido, a Itália contratou médicos cubanos; a Inglaterra, mesmo diante de um quadro de xenofobia, abriu as fronteiras para imigração de profissionais de saúde; em Nova Iorque, o quadro de policiais colapsou ao chegar a 18% de contaminação.
Desse modo, o combate a pandemia exigiu a habilitação extraordinária de profissionais visando a manutenção dos serviços essenciais, sendo essa medida tão necessária como a compra emergencial de respiradores, máscaras ou álcool em gel.
Em um cenário hipotético, não podemos descartar essas mesmas necessidades de contratações extraordinárias no Brasil. São previsíveis, ainda, jornadas e serviços extraordinários, criação de benefícios para tratamento de saúde desses profissionais.
Assim, o congelamento indiscriminado de contratações, reajustamento e criação de benefício de qualquer natureza para servidores públicos em um período de calamidade pública, retira dos governantes a flexibilidade para enfrentarem a crise de acordo com as nuances de suas regiões, representando medida insofismavelmente inadequada e incoerente.
É fruto, portanto, de um preconceito a respeito dos serviços públicos, curtido por pessoas que via de regra nunca precisaram dispor deles e por isso mesmo distorcem de forma acrítica o seu papel.
Para vencer essa guerra é preciso eleger o verdadeiro inimigo, e este definitivamente não é o serviço ou servidor público que, ao fim e ao cabo, é a linha de frente no combate à pandemia.
- Rafael Sampaio é presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia Civil do DF (Sindepo-DF) e da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Judiciária (ADPJ)