Os perigos ocultos da privatização da gestão escolar
A privatização pode ampliar desigualdades no acesso à educação de qualidade, podendo não trazer os resultados esperados
Rafael Parente
atualizado
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A privatização da gestão de escolas públicas tem sido debatida intensamente, e alguns governos estaduais têm considerado essa prática como uma solução mágica para os desafios enfrentados na educação pública. Mas será que essa abordagem realmente funciona? Estudos internacionais e experiências concretas sugerem que a privatização pode não ser a panaceia que alguns acreditam. Neste artigo, vamos mergulhar nos motivos pelos quais a privatização das escolas pode não trazer os resultados esperados, embasados em casos e estudos concretos.
Os governos apresentam falhas frequentes de regulamentação, acompanhamento e avaliação. O Estado enfrenta dificuldades para monitorar adequadamente suas próprias escolas, as escolas particulares, religiosas e vocacionais. Adicionar a necessidade de regulamentação, acompanhamento e avaliação de mais um modelo diferente de gestão deve agravar esses problemas. Estudos mostram que, em muitos casos, a falta de fiscalização adequada leva a uma diminuição da qualidade do ensino. Um relatório do National Education Policy Center (NEPC) nos Estados Unidos concluiu que as escolas charter, que funcionam sob um modelo de gestão privada, frequentemente apresentam variações significativas na qualidade da educação devido à supervisão inconsistente.
As empresas privadas têm como principal objetivo o lucro. Isso pode levar a cortes em áreas essenciais para maximizar ganhos, comprometendo a qualidade da educação oferecida aos alunos. No Chile, por exemplo, a privatização da educação através de um sistema de vouchers resultou em desigualdades significativas e em uma qualidade inferior de ensino para alunos de baixa renda. Um estudo conduzido por Hsieh e Urquiola (2006) mostrou que a competição e o foco no lucro não necessariamente levaram a uma melhoria no desempenho dos alunos.
Os pesquisadores Lara Simielli e Martin Carnoy analisaram as evidências sobre escolas charter e vouchers. O estudo deles incluiu mais de 150 pesquisas publicadas em revistas internacionais e revisadas por pares. Nesta meta-análise, eles concluíram que as escolas charter têm um impacto nulo ou muito baixo no desempenho dos estudantes e que contribuem negativamente para a segregação e estratificação do sistema educacional.
A privatização pode ampliar desigualdades no acesso à educação de qualidade. Escolas em áreas mais ricas tendem a atrair mais recursos e melhores gestores, enquanto escolas em áreas carentes podem continuar a enfrentar dificuldades. A experiência da Suécia, que introduziu um sistema de escolas privadas financiadas pelo estado nos anos 1990, mostrou que essa abordagem levou a uma segregação educacional maior, onde alunos de famílias mais ricas frequentavam escolas com melhores recursos, enquanto os de famílias menos favorecidas ficavam em escolas de menor qualidade.
Modelos de gestão privada geralmente enfrentam problemas de continuidade e de sustentabilidade. Contratos podem ser encerrados ou não renovados, levando a interrupções na gestão escolar. Além disso, a sustentabilidade financeira a longo prazo é incerta, colocando em risco a estabilidade das escolas. No Reino Unido, a implementação das “academias”, escolas públicas administradas por empresas privadas, enfrentou problemas de sustentabilidade, com várias academias fechando ou sendo reabsorvidas pelo sistema público devido a falências ou má gestão.
A privatização enfraquece a ideia e o trabalho de uma rede única de educação. Uma rede educacional integrada e coesa é fundamental para garantir a equidade e a qualidade do ensino. A fragmentação resultante da privatização pode criar disparidades e dificultar a implementação de políticas educacionais consistentes. A pesquisa do Education Policy Analysis Archives indica que a fragmentação das redes escolares através de modelos de privatização pode resultar em uma falta de coerência nas práticas pedagógicas e administrativas, prejudicando a uniformidade do ensino.
Responsabilidade do Estado
Educação é um direito fundamental e uma responsabilidade do Estado. Transferir essa responsabilidade para empresas privadas pode diluir a obrigação pública de fornecer educação de qualidade para todos. O Estado deve focar em aprimorar suas próprias capacidades em vez de terceirizá-las. Estudos mostram que a gestão pública, quando bem implementada e supervisionada, pode alcançar resultados superiores aos da gestão privada, especialmente em termos de equidade e inclusão social.
Isso não quer dizer, no entanto, que o setor privado deva ser excluído. Parcerias entre governos e empresas podem funcionar para construções e reformas de creches e escolas, aquisição e manutenção de equipamentos e infraestrutura em geral. PPPs, por exemplo, têm o potencial de beneficiar a educação quando bem estruturadas e geridas. Exemplos de Belo Horizonte, Pernambuco e São Paulo demonstram que é possível utilizá-las para melhorar a qualidade e aumentar o acesso à educação. Mas é fundamental que haja um monitoramento rigoroso, transparência e um compromisso contínuo com a equidade.
Dessa forma, embora a privatização da gestão escolar possa parecer uma solução atrativa para os problemas da educação pública, a experiência internacional e as evidências empíricas sugerem que essa abordagem enfrenta desafios significativos. A falta de supervisão adequada, o foco no lucro, a ampliação das desigualdades, a falta de continuidade, o enfraquecimento da rede educacional e a responsabilidade pública são fatores que precisam ser considerados cuidadosamente antes de adotar tais políticas.
* Rafael Parente é diretor-executivo do Instituto Salto e ex-secretário de Educação do Distrito Federal