O solstício de Andrade Júnior: ator de Brasília que venceu o Kikito em 2020
O cearense radicado em Brasília nunca decorava o texto, mas sempre roubava a cena. Ele fez história em Gramado
Santiago Dellape
atualizado
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Vivo, Andrade Júnior foi Sol. Magnético, onipresente, acima de tudo engraçado. Aquela graça inata do cearense, a começar pelo sobrenome: Júnior há de ser tudo, menos um Matusalém robusto com o mapa do Brasil vincado na cara. “Um tipo brasileiro com o elã de homem do povo”, definiu o paraibano Vladimir Carvalho, primeiro a captar – fortuitamente – a verve do ator em celuloide, como figurante do documentário Vestibular 70.
Aqui, Andrade faz pela primeira vez o que faria pelo resto da vida: ele rouba a cena. Sua personalidade solar ia muito além do sentido trivial de alguém espirituoso – onde quer que chegasse, ele tinha mesmo o dom natural de desbalancear o campo gravitacional a seu favor e se tornar o foco das atenções, fazendo tudo orbitar ao seu redor.
Notem como no filme de Vladimir ele já aparenta mais do que os 26 anos que tinha na época. Tendo o conhecido já na melhor idade, acabei criando essa fábula particular de que Andrade sempre foi velho, tal qual uma entidade milenar. Não obstante, ele acabou se notabilizando por papéis arquetípicos associados à velhice: São Pedro, Deus, Papai Noel ou, simplesmente, o Velho, como no filme póstumo que o inscreveu no panteão dos grandes atores brasileiros. King Kong em Asunción, eleito, nesse sábado (26/9), Melhor Filme pelos júris popular e oficial do 48º Festival de Gramado, levou também os Kikitos de Melhor Trilha Sonora e, naturalmente, o de Melhor Ator – não poderia ser diferente, uma vez que Andrade é o Sol do filme, nas palavras do diretor pernambucano Camilo Cavalcante, em seu discurso de agradecimento.
Conheci Andrade no começo dos anos 2000, indo revelar negativo no cine-foto que ele tinha na UnB. Numa dessas, ele me convence a botá-lo de ator num dos meus curtas (o velho tinha ótima lábia, só você vendo). Nada Consta era uma ficção científica mambembe, meu projeto de graduação, e o velho, à princípio, apenas o ator coadjuvante. O que ele faz então? Com suas mugangas e seu carisma inesgotável, arranca a cena das mãos do protagonista e leva pra casa dois troféus de melhor ator (nos festivais Nóia e Guarnicê), subvertendo qualquer lógica ou etiqueta.
Como eu raramente podia viajar pros festivais já que estava sempre amarrado à Brasília, trabalhando, logo descobri que o melhor negócio era mandar o Andrade como embaixador dos filmes: não sei que conversa ele jogava pra cima do povo, mas sempre voltava cheio de troféu (certa vez trouxe cinco). Numa dessas missões diplomáticas, em 2007, no festival de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, Andrade dividiu o quarto de hotel com Camilo, que também estava lá com um curta: por brincadeira, o velho mostrou-lhe a personificação de um gorila, sua marca registrada desde que começou a fazer teatro em Brasília, na década de 1960 (era candango na acepção original do termo, tendo se mudado com a família para a capital antes da inauguração, e aqui passado 60 dos 74 anos que viveu). A visceralidade e o impacto da performance simiesca foram tão intensos que acenderam em Camilo uma fagulha. A qual, mais de 10 anos depois, viria a se converter na explosão de força e originalidade que arrebatou público e júri da primeira edição inteiramente televisionada do Festival de Gramado. Ao final, é de se admirar como Andrade fundou sua vida e sua carreira nas bases do amor, das amizades e dos afetos. Foi – de certa forma continua sendo – a pessoa mais gregária que já conheci.
Curioso que um filme tão elaborado e com tantas camadas tenha surgido de uma simples brincadeira, e cabe aqui destacar o mérito visionário de Camilo, que se permitiu brincar e acabou revelando a potência dramática de um ator até então associado exclusivamente à comédia. Brincadeira boa, pois Andrade era, no fundo, um garoto. Ao menos tinha a energia de um, o que resta evidente na tela, em suas extenuantes andanças que atravessam a América do Sul. Como um menino empolgado com seu brinquedo novo, de forma quase obsessiva, nos dois últimos anos de vida ele não fez outra coisa senão narrar os mais pitorescos causos vivenciados nas gravações de King Kong, e não se cansava de mostrar, a quem quer que fosse, a abertura do filme que Camilo tinha lhe enviado no celular. Viveu seus últimos dias em êxtase.
Andrade ansiou muito pela estreia de King Kong, e ficaremos para sempre com o inquietante enigma de por que ele precisou seguir andarilho, sem ter recebido sua merecida aclamação em vida. Quero crer que, enquanto tentamos ler inutilmente nas entrelinhas do destino, Andrade a tudo assiste de camarote, pleníssimo, dando aquela sua gargalhada gostosa, hã? Irradiando alegria e servindo de sol para toda uma geração de artistas e fãs que jamais o esquecerão, tampouco deixarão de amá-lo. Andrade continua sendo o centro das atenções, pois cá estamos a falar dele outra vez e a reverberar seu amor. E é por isso que, mais do que nunca, Andrade Júnior vive!
A benção do Kikito
A coroação póstuma de Andrade Júnior em Gramado sedimenta algo que já vem se firmando como tradição na Serra Gaúcha: o reconhecimento à excelência dos atores candangos. Começando lá atrás, nos curtas, com Momento Trágico (2004), de Cibele Amaral, que rende um Kikito à irresistível comicidade de André Deca, em performance de cair o queixo – tanto os nossos quanto o dele, e quem viu o filme há de concordar. A dobradinha vem logo em seguida, com a fanfarronice canábica de Lauro Montana e Edu Moraes, no seminal e debochado Sequestramos Augusto César, de Gui Campos – apesar do deslize do júri que premia apenas Montana (economia de estatuetas é a única explicação).
Na década seguinte evoluímos para os longas, e a dobradinha dessa vez é no mesmo ano, com o mesmo filme: O Último Cine Drive-In (2015), de Iberê Carvalho, emociona Gramado e vê reconhecida a intensidade de Breno Nina (ator principal) e Nanda Rocha (atriz coadjuvante), que, apesar de nascidos fora do quadradinho, aqui construíram suas histórias, como legítimos candangos.
Isso sem falar nos forasteiros ilustres que levaram para casa Kikitos de atuação por filmes brasilienses, caso de Rogério Fróes (por Tepê, de José Eduardo Belmonte, em 2000), Maria Alice “Tapa na Pantera” Vergueiro (prêmio especial por Rosinha, de Gui Campos, em 2016), Paulo Miklos (por O Homem Cordial, de Iberê Carvalho, em 2019) e Elisa Lucinda (prêmio especial por Por Que Você Não Chora, de Cibele Amaral, em 2020). Seja importando ou exportando talentos, não resta dúvidas quanto à vocação do DF para formar e projetar grandes nomes da arte dramática. Sendo assim, que venham mais Kikitos para chancelar essa vocação!
Santiago Dellape é cineasta e jornalista brasiliense. Fez doze filmes com Andrade Jr. e ganhou o prêmio de Melhor Filme do Júri Popular no 38º Festival de Gramado, em 2010, pelo curta Ratão