metropoles.com

O princípio da insignificância e a política criminal brasileira

Penas alternativas para crimes de mínima periculosidade resultam no desafogamento da Justiça e do sistema carcerário

Flávia Guth

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Michael Melo/Metrópoles
Presos vivem de cueca e enfrentam temperatura de 50º C nas celas em Roraima
1 de 1 Presos vivem de cueca e enfrentam temperatura de 50º C nas celas em Roraima - Foto: Michael Melo/Metrópoles

Furto de R$ 4,15 em moedas, uma garrafa de Coca-Cola de 290ml, duas garrafas de cerveja de 600ml e uma garrafa de pinga de 1 litro, tudo avaliado em R$ 29,15, restituídos à vítima. Pena aplicada: 1 ano, 9 meses e 23 dias de reclusão, em regime inicial semiaberto. Isto é, crime praticado sem violência, em valor abaixo de R$ 30, com restituição integral à vítima.

Ainda assim houve condenação, com imposição de regime semiaberto para o cumprimento de pena inicial (regime mais gravoso ao que teria direito, em razão da reincidência e maus antecedentes).

Esse caso foi recentemente analisado, em sede de habeas corpus, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Para o relator, deveria ser aplicado o princípio da insignificância, ainda que o condenado fosse reincidente e com maus antecedentes.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) recorreu dessa decisão (o que tem acontecido com regularidade em casos de reconhecimento da insignificância) e postulou a manutenção da condenação do réu, pelo furto qualificado. A 2ª Turma do STF manteve, por unanimidade, a decisão proferida monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes e concedeu a ordem, pela absolvição do paciente.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, para haver o reconhecimento da insignificância, faz-se necessário o cumprimento de quatro requisitos de natureza objetiva: mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Há, ainda, o entendimento em julgados tanto do Supremo Tribunal Federal, quanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no sentido de que a reincidência, específica ou não, bem como maus antecedentes, seriam fatores impeditivos do reconhecimento da insignificância.

Existem inúmeros outros julgados semelhantes ao relatado, em tramitação tanto no STJ, quanto no STF. Esse e outros julgamentos revelam a urgência no repensar das políticas criminais de encarceramento no Brasil, especialmente quando se verifica a desproporção entre o delito cometido e a pena aplicada.

E mais. É preciso repensar os motivos pelos quais não apenas os magistrados deixam de absolver pela insignificância, mas também os motivos pelos quais o Ministério Público tem frequentemente recorrido das decisões que a aplicam.

Balanço

Só no ano de 2020, mais de 800 casos de insignificância foram analisados pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, segundo dados recentes do Ministério Público Federal. A maioria dos casos refere-se a crimes de furtos simples (228) e qualificados (202).

Em seguida, aparecem delitos como contrabando ou descaminho (70), tráfico de drogas e condutas afins (51), crimes do sistema nacional de armas (27), roubo – simples e majorado (27), crimes contra a ordem tributária (9), contra as telecomunicações (9), receptação (9) e crime de moeda falsa e assimilados (9), entre outros tipos penais menos frequentes.

Não é incomum que, após muitos anos de movimentação da máquina judiciária, as condenações em situações evidentes de insignificância sejam revertidas nas instâncias extraordinárias e o réu, absolvido.

Ou seja, até mesmo do ponto de vista econômico não há sentido na manutenção da tramitação de ações penais com condenações que sequer alcançarão penas superiores a 4 anos de reclusão e que oportunizam formas consensuais de gestão conflito penais, como o acordo de não persecução penal, previsto no artigo 28-A do Código Penal.

Afastar o processo penal de determinadas condutas carentes de potencialidade lesiva, de alta reprovabilidade e de mínima periculosidade implicam em evidente desafogamento de todo o sistema criminal, nele incluído o penitenciário. Na expressão de von Liszt, “só a pena necessária é justa”.

O sistema penal, incluídos o Poder Judiciário e o Ministério Público, devem compromisso com a proteção da dignidade humana. Contudo, o que se tem extraído do sistema penal como um todo, em especial quando se analisa o penitenciário, é a estigmatização e a degradação na figura social de sua clientela¹. Estigmatização, repressividade, degradação e seletividade parecem ser pontos cardeais que orientam o sistema penal brasileiro.

Por essa razão é que se deve questionar, em uma verificação de política criminal, se as circunstâncias do crime e a desproporção entre o desvalor da conduta e a imposição da sentença penal condenatória merecem a movimentação da máquina judicial.

Por outro lado, há quem acredite que a aplicação principio da insignificância pode ser interpretado não apenas como impunidade evidente, mas um estimulo à reiteração criminosa. Contudo e com todo respeito às opiniões diversas, não há justificativa para tanto.

Ao revés do que se possa imaginar, a aplicação do princípio da insignificância apenas retira da esfera de atuação do direito penal, que implica em restrição à liberdade individual, aquelas condutas de baixa reprovabilidade social e, por outro lado, fortalece outros formatos de reparação daquele dano, tais como a restituição do bem e ressarcimento de eventuais prejuízos causados à vítima.

É preciso, com urgência, afastar do imaginário coletivo que o encarceramento é a única forma eficaz de atuação do Estado contra condutas previstas no Código Penal.

Ao contrário, inúmeras pesquisas e dados oficiais revelam que o alto índice de encarceramento não leva à diminuição da criminalidade e ainda alimentam grupos e facções criminosas no aliciamento de jovens desnecessariamente encarcerados. É urgente a necessidade de repensarmos o sistema penal como um todo. O modelo que seguimos, à toda evidência, não funciona.

[1] Batista, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Revan, 2019, p. 26.

* Flávia Guth é ex-assessora de ministro do Superior Tribunal de Justiça, advogada fundadora do escritório Flávia Guth Advocacia, vice-presidente da Comissão do Direito de Defesa da OAB/DF, cofundadora da Associação Elas Pedem Vista e diretora do Instituto de Garantias Penais – IGP.

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?