O princípio da insignificância e a política criminal brasileira
Penas alternativas para crimes de mínima periculosidade resultam no desafogamento da Justiça e do sistema carcerário
Flávia Guth
atualizado
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Furto de R$ 4,15 em moedas, uma garrafa de Coca-Cola de 290ml, duas garrafas de cerveja de 600ml e uma garrafa de pinga de 1 litro, tudo avaliado em R$ 29,15, restituídos à vítima. Pena aplicada: 1 ano, 9 meses e 23 dias de reclusão, em regime inicial semiaberto. Isto é, crime praticado sem violência, em valor abaixo de R$ 30, com restituição integral à vítima.
Ainda assim houve condenação, com imposição de regime semiaberto para o cumprimento de pena inicial (regime mais gravoso ao que teria direito, em razão da reincidência e maus antecedentes).
Esse caso foi recentemente analisado, em sede de habeas corpus, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Para o relator, deveria ser aplicado o princípio da insignificância, ainda que o condenado fosse reincidente e com maus antecedentes.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) recorreu dessa decisão (o que tem acontecido com regularidade em casos de reconhecimento da insignificância) e postulou a manutenção da condenação do réu, pelo furto qualificado. A 2ª Turma do STF manteve, por unanimidade, a decisão proferida monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes e concedeu a ordem, pela absolvição do paciente.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, para haver o reconhecimento da insignificância, faz-se necessário o cumprimento de quatro requisitos de natureza objetiva: mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Há, ainda, o entendimento em julgados tanto do Supremo Tribunal Federal, quanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no sentido de que a reincidência, específica ou não, bem como maus antecedentes, seriam fatores impeditivos do reconhecimento da insignificância.
Existem inúmeros outros julgados semelhantes ao relatado, em tramitação tanto no STJ, quanto no STF. Esse e outros julgamentos revelam a urgência no repensar das políticas criminais de encarceramento no Brasil, especialmente quando se verifica a desproporção entre o delito cometido e a pena aplicada.
E mais. É preciso repensar os motivos pelos quais não apenas os magistrados deixam de absolver pela insignificância, mas também os motivos pelos quais o Ministério Público tem frequentemente recorrido das decisões que a aplicam.
Balanço
Só no ano de 2020, mais de 800 casos de insignificância foram analisados pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, segundo dados recentes do Ministério Público Federal. A maioria dos casos refere-se a crimes de furtos simples (228) e qualificados (202).
Em seguida, aparecem delitos como contrabando ou descaminho (70), tráfico de drogas e condutas afins (51), crimes do sistema nacional de armas (27), roubo – simples e majorado (27), crimes contra a ordem tributária (9), contra as telecomunicações (9), receptação (9) e crime de moeda falsa e assimilados (9), entre outros tipos penais menos frequentes.
Não é incomum que, após muitos anos de movimentação da máquina judiciária, as condenações em situações evidentes de insignificância sejam revertidas nas instâncias extraordinárias e o réu, absolvido.
Ou seja, até mesmo do ponto de vista econômico não há sentido na manutenção da tramitação de ações penais com condenações que sequer alcançarão penas superiores a 4 anos de reclusão e que oportunizam formas consensuais de gestão conflito penais, como o acordo de não persecução penal, previsto no artigo 28-A do Código Penal.
Afastar o processo penal de determinadas condutas carentes de potencialidade lesiva, de alta reprovabilidade e de mínima periculosidade implicam em evidente desafogamento de todo o sistema criminal, nele incluído o penitenciário. Na expressão de von Liszt, “só a pena necessária é justa”.
O sistema penal, incluídos o Poder Judiciário e o Ministério Público, devem compromisso com a proteção da dignidade humana. Contudo, o que se tem extraído do sistema penal como um todo, em especial quando se analisa o penitenciário, é a estigmatização e a degradação na figura social de sua clientela¹. Estigmatização, repressividade, degradação e seletividade parecem ser pontos cardeais que orientam o sistema penal brasileiro.
Por essa razão é que se deve questionar, em uma verificação de política criminal, se as circunstâncias do crime e a desproporção entre o desvalor da conduta e a imposição da sentença penal condenatória merecem a movimentação da máquina judicial.
Por outro lado, há quem acredite que a aplicação principio da insignificância pode ser interpretado não apenas como impunidade evidente, mas um estimulo à reiteração criminosa. Contudo e com todo respeito às opiniões diversas, não há justificativa para tanto.
Ao revés do que se possa imaginar, a aplicação do princípio da insignificância apenas retira da esfera de atuação do direito penal, que implica em restrição à liberdade individual, aquelas condutas de baixa reprovabilidade social e, por outro lado, fortalece outros formatos de reparação daquele dano, tais como a restituição do bem e ressarcimento de eventuais prejuízos causados à vítima.
É preciso, com urgência, afastar do imaginário coletivo que o encarceramento é a única forma eficaz de atuação do Estado contra condutas previstas no Código Penal.
Ao contrário, inúmeras pesquisas e dados oficiais revelam que o alto índice de encarceramento não leva à diminuição da criminalidade e ainda alimentam grupos e facções criminosas no aliciamento de jovens desnecessariamente encarcerados. É urgente a necessidade de repensarmos o sistema penal como um todo. O modelo que seguimos, à toda evidência, não funciona.
[1] Batista, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Revan, 2019, p. 26.
* Flávia Guth é ex-assessora de ministro do Superior Tribunal de Justiça, advogada fundadora do escritório Flávia Guth Advocacia, vice-presidente da Comissão do Direito de Defesa da OAB/DF, cofundadora da Associação Elas Pedem Vista e diretora do Instituto de Garantias Penais – IGP.