O dia em que meu primeiro amor se transformou em meu primeiro agressor
O sangue tem gosto de ferro. Tirei a prova disso quando meu primeiro namorado decidiu me bater. Eu tinha 15 anos, ele 18. Estávamos juntos havia 1 ano e ele nunca tinha me agredido fisicamente. Nossa relação era tão estável quanto a de qualquer casal adolescente: terminava, voltava, começava tudo de novo. Durante uma das nossas […]
Leilane Menezes
atualizado
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O sangue tem gosto de ferro. Tirei a prova disso quando meu primeiro namorado decidiu me bater. Eu tinha 15 anos, ele 18. Estávamos juntos havia 1 ano e ele nunca tinha me agredido fisicamente. Nossa relação era tão estável quanto a de qualquer casal adolescente: terminava, voltava, começava tudo de novo.
Durante uma das nossas separações, nos encontramos em um show, por acaso. Eu estava com minhas amigas, ele quis conversar, eu não, então me afastei. Eu falava com amigos quando senti o peso da mão dele no meu rosto. O tapa feriu a minha boca e a minha dignidade. Na minha frente, alguns caras seguravam o homem que, em segundos, passou de meu primeiro amor a meu primeiro agressor.
Tudo que eu queria era revidar, responder de igual para igual, o que era impossível. Ele, 1,80m. Eu, 1,60m. Eu só chorava e minhas amigas tentavam me acalmar. Frases como “do que vai adiantar você contar para os seus pais?” e “nem adianta falar com a polícia” foram repetidas várias vezes, até fazerem sentido. Naquela noite, fui dormir chorando. Nunca contei nada aos meus pais, tão amorosos. Senti vergonha e medo de levar uma bronca, embora não existisse lógica nenhuma nesse pensamento.
Meu agressor me procurou várias vezes, ficou noites e noites plantado na portaria do meu prédio e implorou por desculpas, com olhos cheios de lágrimas. Cheguei a cogitar perdoá-lo, na minha santa inocência de adolescente, mas a magoa não deixou, ainda bem. Nunca mais voltamos a ficar juntos, mas ele se tornou inesquecível.
Em 30 anos, foi a única vez que um homem me agrediu fisicamente (psicologicamente é outro assunto). De lá para cá, tornei-me uma feminista militante, incapaz de aceitar qualquer abuso, 100% dona de mim. Descobri que mulheres precisam lutar pelo óbvio, pelo básico, para serem vistas como seres humanos e não tratadas como propriedade
Essa semana, diante das notícias sobre as agressões sofridas por Luiza Brunet, me lembrei daquele tapa (como sempre me lembro ao ver notícias sobre mulheres mortas ou agredidas, sejam elas famosas ou não). Li comentários cruéis e absurdos em todo lugar onde se noticiou a violência injustificável. Pessoas escreveram:
“Quem “compra” se acha no direito de fazer o que quiser com a sua propriedade.”
“Acho que tem gente confundindo feminismo com femismo. Quem casa com esse tipo de homem que acha que “compra” tudo – e paga todas as contas – deveria saber, que na hora que o bicho pega ele acha que pode fazer o que quiser com sua “propriedade”.
“Se ela se relacionasse por amor, não teria apanhado.”
Mulheres nunca estão à venda. Mesmo as que vendem sexo ou as que se interessam por dinheiro e poder (e não digo em nenhum momento que esse é o caso de Luiza Brunet) não passam a ser propriedade de alguém. Não cruzam essa linha imaginária que dá direito a um homem de quebrar as costelas de uma companheira sem ser incomodado. Quem apoia esse tipo de barbaridade, quem é seletivo em sua solidariedade, precisa olhar para dentro.
Qualquer noite dessas, pode ser você dormindo tranquilo (a) enquanto a sua filha chora sem fazer barulho depois de apanhar de um homem. Ou pior: qualquer hora dessas, a polícia pode bater à sua porta e pedir que você reconheça o corpo da sua menina, tão bem criada, tão bela e recatada. E se ela não for nada disso, será que ela mereceu?
A violência contra a mulher ocorre por um só motivo: um homem se sentiu no direito de ferir o que enxerga como propriedade, como menor do que ele. E, acredite, quem quer sempre encontrará uma razão.
Por isso, é preciso resistir ao impulso ignorante de discutir falsas justificativas. Precisamos concentrar todas as nossas energias no motivo real: vivemos em uma sociedade machista, que divide as mulheres entre as que merecem viver e as que não são dignas de respeito. Tudo baseado em regras de comportamento perversas de como ser e agir.
O julgamento das pessoas costuma dizer mais sobre elas do que sobre os outros. Quem acredita que há motivos para bater em uma mulher quer se sentir seguro (a), pensar que aquilo nunca vai acontecer com ela (ele) ou com os que amam. Nós e os nossos sempre estamos em outra categoria de gente. Por isso, não saberemos que sabor tem o sangue. Que engano. Todos estão a salvo, até sentirem o gosto da realidade.