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Naturalização do trabalho infantil: quando perdemos a sensibilidade?

“Só quem tem sensibilidade sabe que uma criança do Sol Nascente jamais terá as mesmas oportunidades que um menino ou menina do Plano Piloto”

Autor Kelly Almeida

atualizado

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Recentemente, o presidente do Brasil surpreendeu o país ao pronunciar mais uma de suas frases polêmicas. Segundo ele, “o trabalho enobrece todo mundo e se aprende a dar valor ao dinheiro desde cedo quando se trabalha”, fazendo referência ao trabalho infantil. Há um grande problema nessa colocação. O art. 7º da Constituição Federal, lei máxima do nosso país, proíbe, em seu inciso XXXIII, “qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.”

Naturalizar o trabalho infantil vai na mesma lógica de defender a meritocracia entre ricos e pobres. Só quem tem sensibilidade, ou conhece minimamente a realidade do nosso país, sabe que, no contexto do Distrito Federal, uma criança do Sol Nascente jamais terá as mesmas oportunidades que um menino ou uma menina criado no Plano Piloto ou em outras regiões mais desenvolvidas da capital do país.

Passei parte da minha infância no Novo Gama, uma cidade goiana, no Entorno do DF, que figura há anos entre as mais violentas do país, especialmente pelos altos índices de homicídios. Carrego boas lembranças de lá: brinquei na rua, fiz amigos, me alimentei bem, tomei banho quente todos os dias, estudei em escola particular. Não precisei trabalhar para ter nada disso. Assim que puderam, meus pais nos levaram, a mim e à minha irmã, para morar em um bairro muito melhor, no DF. Fiz inglês, viajei nas férias, me alimentei com dignidade. Sim, fugi bem das estatísticas daquele local onde comecei a infância em que as expectativas da população não são de muita prosperidade.

Se fiz imã de geladeira para vender aos familiares, o fiz por conta própria e com a saúde de quem não tinha qualquer obrigação de conseguir dinheiro para ter alimentação ou escola de qualidade. Não posso dizer o mesmo das crianças que encontro diariamente nos bares, nos semáforos. Não posso dizer o mesmo das crianças que têm a infância interrompida pelo trabalho na lavoura, na construção civil, em casas de família ou das que trocam a escola pelo trabalho doméstico e criação dos irmãos.

Dia desses, jantava com uma amiga em um restaurante do Plano Piloto e uma menina de 12 anos tentou nos vender pano de prato. Recusamos a compra, mas pedimos que ela sentasse para comer conosco. Pediu uma tapioca e um suco de laranja. Em menos de 10 minutos, descobrimos que a garota, moradora de Ceilândia, tinha cinco irmãos, um deles recentemente assassinado. A mãe não trabalhava. Ela não tinha contato com o pai e, na idade escolar, faltava às aulas com frequência. Ali o caso era de inversão: primeiro, o trabalho, depois, a escola!

Alguém vai tentar me convencer de que essa menina terá as mesmas condições que eu tive, que os filhos dos meus amigos de classe média têm e que, provavelmente, os meus filhos terão? Alguém realmente acha que uma menina que passa a noite andando de bar em bar em busca de dinheiro para ajudar na renda familiar terá condições de competir de forma igual com as crianças que têm casa, alimentação, aulas de idiomas, lazer e boa estrutura familiar?

As estatísticas são claras quando mostram o perfil das crianças e dos adolescentes submetidos ao trabalho no nosso país: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 66,2% dos que trabalhavam no Brasil em 2016 eram pretos ou pardos. E mais: 49,83% dessas crianças e desses adolescentes eram de famílias com renda per capita menor do que meio salário mínimo.

Extrema pobreza

Não para por aí. No DF, um levantamento divulgado pelo Ministério do Desenvolvimento Social em 2017 mostrou que 67 mil famílias brasilienses viviam em situação de extrema pobreza. Isso significa que a renda mensal era de até R$ 85 por pessoa. Explicando melhor: quer dizer que essas pessoas não têm condições de boa alimentação, não têm lazer e muito menos possibilidade de oferecer uma educação digna às crianças e aos adolescentes da residência. No Brasil, neste mesmo período, eram 54,8 milhões de pessoas em situação de pobreza e 15,3 milhões em extrema pobreza.

Em 11 anos, entre 2007 e 2018, 261 crianças e adolescentes brasileiros morreram trabalhando, segundo levantamento do Sistema de Informação de Agravos de Notificações, do Ministério da Saúde. Outras 43.777 sofreram algum tipo de acidente de trabalho. Nós não devemos apoiar que crianças trabalhem! Precisamos que elas estejam dentro das salas de aula, se alimentem, brinquem, vivam em ambientes harmoniosos e estejam inseridas em programas sociais que valorizem a vida e a educação.

Devemos nos inspirar em políticas públicas de sucesso, como as da Finlândia, que ocupa o primeiro lugar em educação de qualidade no mundo, de acordo com levantamento da Pearson International, empresa de educação com sede em Londres. O país garante a todas as crianças oportunidades iguais na qualidade do aprendizado. Tudo de forma gratuita. Neste mesmo ranking, o Brasil aparece na 39ª posição em uma lista de 40 países. Fica na frente apenas da Indonésia.

Durante quase 10 anos como repórter, fazendo matérias para as editorias de polícia e de cidades, estive nas 31 regiões administrativas do DF. Sem exceção. Vi de perto todas as realidades. Escrevi sobre violência contra criança, trabalho infantil, exploração sexual. Entrevistei centenas de pessoas, entre elas juízes, promotores, delegados, conselheiros tutelares. Nunca (nunca mesmo) ouvi algum deles defender o trabalho infantil. Nunca ouvi um único especialista falar que deveríamos incentivar a prática, muito pelo contrário! Só fiz anotações sobre a importância de combater qualquer tipo de trabalho infantil.

Já temos muitos retrocessos ao não termos a capacidade de evitar que crianças e adolescentes estejam longe da violência e do trabalho. Se não for para respeitar a criança e o adolescente, que os governantes respeitem ao menos a nossa Constituição Federal, lei maior que deve nortear todas as legislações e atos da administração pública. Foi lealdade e cumprimento a esse texto que os políticos prometeram ao tomar posse em seus cargos!

É mais do que necessário torcer para que o Brasil melhore – eu também torço todos os dias por isso, mas é imperativo saber reconhecer quando algo não é bom para o nosso país. E incentivar o trabalho de crianças, definitivamente, não é a solução dos nossos problemas. É apenas criar mais um. Aliás, muito pior: é aumentar uma realidade triste, por vezes invisível, e capaz de apagar os sonhos daqueles que deveriam ser nossa maior esperança.

Kelly Almeida é jornalista, atuou como repórter em Brasília entre 2009 e 2017. É vencedora de importantes prêmios de jornalismo como o da Confederação Nacional da Indústria e o do Ministério Público do Trabalho. Atualmente, é assessora de imprensa.

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