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Não deixem minha avó morrer no Hospital de Base

Ela aguarda uma cirurgia no fêmur há quase um mês. Aos 97 anos, os últimos dias dela estão ameaçados por causa de um sistema falido

Autor PRISCILLA BORGES

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Desde o dia 29 de dezembro, eu e minha família experimentamos o sofrimento vivido por milhões de brasileiros em todo o país: a dependência do Sistema Único de Saúde (SUS). Contar com uma rede de hospitais públicos que atende a qualquer cidadão poderia ser privilégio. No Brasil, no entanto, tornou-se fonte de frustração e impotência para quem depende dela.

Descaso, impotência e revolta massacram o estado de espírito de quem já está doente do corpo. As informações não são repassadas pelos profissionais de forma clara. A espera é longa. A solução, sempre distante. A sensação de desespero aumenta quando se observa o cenário ao redor. Nos relatos dos pacientes, falta amparo e sobra desatenção.

Neste caso, quem sofre com a falta de atendimento adequado é a minha avó, uma velhinha fofa de 97 anos. Quase centenária, ela faz parte de um pequeno grupo. De acordo com o último Censo Demográfico do IBGE, de 2010, apenas 489 pessoas em Brasília tinham entre 95 e 99 anos.

A minha avó é uma pessoa rara não só por causa da óbvia estatística da idade. Dona Maria Pereira da Silva, de nome e sobrenome tão comuns, tem uma força fora do normal.

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No dia em que caiu, dentro do seu quarto, ela havia até lavado o próprio banheiro. Nunca aceitou que “mexessem em suas coisas”. E que ninguém se atrevesse a lavar suas roupas tamanho P. A minha avó é uma vovó tipo mignon.

Corajosa, sobreviveu a um câncer de mama, descoberto aos 83 anos. Ela fez mastectomia radical. Vaidosa, nunca saiu de casa sem a prótese no sutiã. Não tem diabetes ou pressão alta, e sua fibrilação atrial no coração é estável há bastante tempo.

Completamente lúcida, dona Maria enche o peito para dizer que vive muito bem, obrigada. Não fosse o desgaste do corpo, implacável, ela poderia garantir que está melhor do que muitos jovens por aí. Sua força e saúde são realmente invejáveis. Desde o ano passado, se aventurou a mexer no WhatsApp. Mandava áudios hilários para o grupo da família.

O fim de vida decente de quase 10 décadas ficou ameaçado desde o dia 29 de dezembro, quando ela caiu, quebrou o fêmur e precisou do sistema público de saúde. Com uma fratura no principal osso do corpo, ela foi internada em um hospital público, já que não tem plano de saúde. Primeiro, sofreu com a dor e a falta de perspectivas no Hospital Regional de Santa Maria. Agora, padece no Hospital de Base de Brasília, o maior do DF.

Em Santa Maria, as histórias de suas companheiras de quarto eram aterrorizantes. Durante várias noites, fui testemunha disso. Uma das três pacientes aguardava há três meses por uma cirurgia no joelho. Outra idosa esperava entrar no centro cirúrgico para corrigir uma fratura no fêmur há 60 dias. A última vizinha de sofrimento passou um mês internada até conseguir ser operada no calcanhar, onde havia rompido o tendão de Aquiles.

Os números que escutamos nos corredores do hospital são impensáveis para quem sente dor, que está com parte do corpo ferida, quebrada, doente. Muitas pessoas ocupam leitos e toda a estrutura hospitalar por meses (quatro, seis, 10 são relatos corriqueiros). São vítimas das falhas de gestão, que onera ainda mais um sistema bastante sobrecarregado.

Nesta quinta-feira (26/1), a minha avó de 97 anos passou pela terceira tentativa frustrada de cirurgia. Em quase um mês de espera, ela fez três longos jejuns, de até 18 horas, acreditando que sua oportunidade de corrigir o que lhe dói tinha finalmente chegado. As justificativas dos insucessos variam entre falta de sala para cirurgia e, agora, a ausência de vaga em UTI. Há médicos e o material necessário para o procedimento. Mas só isso não basta. Por causa de sua idade, é provável que necessite do amparo médico mais intensivo.

É difícil descrever o tamanho da tristeza e da frustração que sentimos ao ter de dizer a ela que, mais uma vez, terá de esperar. Esperar por uma solução que, na verdade, não sabemos se o Hospital de Base dará à minha avó. O seu inocente jeito de protestar foi dizer que, após 18 horas sem comer, ela também já não queria mais se alimentar. É difícil compreender a falta de prioridade. Um organismo frágil, abatido pela idade, está mais exposto a uma cascata de doenças que a própria internação pode gerar. É difícil não pensar que, justamente por causa de sua idade, podem negligenciar suas dores.

Eu e minha família temos consciência e noção de todos os riscos que envolvem o caso dela. Mas não concordamos que esse é um tratamento digno. As indicações dos médicos foram claras. O quadro dela é cirúrgico e, hoje, ela estava em condições físicas para ser operada. Mas não foi. Há profissionais dedicados que se frustram tanto quanto nós por não conseguirem atendê-la. Mas outros foram contaminados por um sistema frio, cheio de vícios e que, às vezes, encosta na desumanidade.

Será mesmo que minha avó, como pessoa e não estatística, é levada em consideração pelo burocrata que, em uma canetada, decide quem entrará no centro cirúrgico e terá a chance de viver melhor? Todos os pacientes que, como ela, aguardam sua vez sem uma ordem judicial e confiando nos critérios médicos, serão atendidos? Até quando a população sofrerá com a falta de gestão eficiente na rede pública de saúde? Eu gostaria de poder ouvir as respostas. Muito mais que isso. Eu gostaria de ver a minha avó em casa de novo.

*Priscilla Borges é editora-chefe do Metrópoles

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