O que o Red Sox de 2013 e o Celtics de 2019 têm em comum?
Após montarem times estrelados que decepcionaram, equipes de Boston encontraram sucesso com elencos mais identificados com a torcida
Vitor Luis Camargo
atualizado
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No dia 3 de outubro de 2012, uma derrota anunciava o fim a temporada do Boston Red Sox, o time de beisebol da cidade. O jogo não podia ter acabado de forma mais amarga: um massacre por 12 x 2 nas mãos do maior rival, o New York Yankees.
Com a derrota para o Yankees, o Red Sox terminou a temporada 2012 com 69 vitórias e 93 derrotas, a pior campanha da equipe desde 1965, quando vencera 62 jogos. Além de um ano perdido, o fim melancólico fez muitas pessoas em Boston se questionarem onde tudo tinha dado errado.
Anos ruins fazem parte de qualquer time em qualquer esporte, mas não era para ser o caso. Um ano antes, esse mesmo time fora montado para ser o melhor do beisebol. O Red Sox trouxera grandes (e caros) craques, montando o elenco mais estrelado da liga. O plano era conquistar títulos; não só um, mas talvez até montar uma dinastia.
Durante algum tempo, tudo seguiu de acordo com o plano; o Red Sox começou a temporada 2011 com a melhor campanha da liga por uma larga margem, e a vaga na pós-temporada parecia assegurada. De repente, tudo caiu por terra. Boston venceu apenas sete das últimas 27 partidas da temporada, e a vaga nos playoffs acabou escapando na última noite do campeonato.
A repercussão desse colapso histórico foi muito além dos campos. A inexplicável eliminação levou à demissão do GM Theo Epstein, o herói local que levara, em 2004, o Red Sox ao seu primeiro título em 86 anos, e do técnico Terry Francona, esse último em meio ao “vazamento” de histórias sobre um suposto vício do treinador em remédios. De fato, boatos acusatórios não faltaram na imprensa local, com o mais famoso deles sendo a história do Boston Globe que dizia que os jogadores do time estariam comendo frango frito, bebendo cerveja e jogando videogames no vestiário durante as derrotas.
A temporada de 2012 era a chance de limpar esse clima ruim e dar a volta por cima. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário: Boston começou o ano com cinco derrotas nos primeiros seis jogos, rumo a míseras 69 vitórias e a pior campanha da sua divisão. A grande maioria dos jogadores mais uma vez decepcionou, dentro e fora dos campos.
Em meio a tantos fracassos e decepções, a relação entre time e torcida atingiu o fundo do poço. O Red Sox era rotineiramente vaiado nos jogos em casa, e seus jogadores hostilizados fora de campo. A imprensa local, fazendo eco ao sentimento geral da cidade, continuava atacando os jogadores em níveis esportivos e pessoais, e isso levou a alguns divórcios feios com ídolos de longa data. No vestiário, o clima não era melhor, com toda a equipe odiando o novo técnico Bobby Valentine, que só durou um ano no comando. E, em um esporte cuja temporada é tão longa, com tantos jogos, e que parte do apelo vem do time e seus jogadores se tornarem parte do dia a dia dos torcedores, a equipe do Red Sox passou a ser genuinamente odiada em Boston.
Foi por esses motivos que, após a derrota para o Yankees naquela noite de outubro de 2012, a diretoria da franquia entendeu finalmente que a situação do Red Sox não era mais sustentável. Era hora de recomeçar. Não apenas buscando uma nova avenida para um eventual título, mas almejando algo muito mais simples e importante: reparar sua relação com a torcida.
Foi com essa mentalidade que Boston se preparou para construir o time para 2013. Muitos dos seus principais e mais caros medalhões foram enviados para longe sem cerimônia. Para o lugar desses jogadores, o Red Sox focou em trazer personalidades positivas, boas pessoas de vestiário, companheiros de time que tivessem histórico de bom ambiente e de serem apreciados pelos seus colegas, atletas com fama de profissionais dedicados, como Mike Napoli, Stephen Drew e, principalmente, Shane Victorino.
Durante as primeiras semanas, parecia que o plano seria um sucesso. O time logo criou uma identidade divertida dentro e fora das quadras, com muitos dos jogadores deixando crescer longas barbas, que logo deu ao grupo o apelido de The Beards (As Barbas). Dentro dos gramados, o Red Sox de 2013 mostrou uma capacidade incrível de aparecer nos momentos críticos, vencendo vários jogos de virada ou com lances heróicos nos últimos minutos, frequentemente com protagonismo de jogadores inusitados. Durante essas primeiras semanas, absolutamente ninguém em Boston se importava que o time fosse bom ou ruim; a torcida estava apenas feliz de ter novamente uma equipe da qual podia gostar.
Mas daí algo estranho começou a acontecer: o time começou a ganhar, e não parou mais. Jogadores de menor expressão, como Koji Uehara, de repente viraram os melhores nas suas posições dentro do esporte. As viradas heroicas foram se acumulando. Reservas cumpriam suas funções e, às vezes, até viravam titulares. Jovens talentos surgiam. De repente, o Red Sox tinha a melhor campanha da liga, vencendo convincentemente seus principais rivais e se posicionando como o time a ser batido na MLB. Quando Boston finalmente parou de tentar vencer com medalhões e decidiu voltar a ser um time normal e positivo, ele foi recompensado.
Boston Celtics
Seis anos depois, se tornou impossível não traçar um paralelo ao assistir o Boston Celtics jogando. Após uma vitória por 110 x 98 no último dia 9 de dezembro, os Celtics tinham uma campanha de 17 vitórias e 5 derrotas para abrir a temporada. Os principais pontuadores do time foram Jayson Tatum e Jaylon Brown, dois jovens talentos de 21 e 23 anos, respectivamente, que representam um novo time após um fracasso doloroso e infeliz.
Assim como o Red Sox, o Boston Celtics de 2018/19 fora montado para ganhar títulos. Mas, assim como o Red Sox, a temporada do Celtics acabou em desgraça. E, assim como com o Red Sox, muitos dos problemas apontados estavam no vestiário.
Merecidamente ou não, o principal culpado apontado foi Kyrie Irving, o talentoso, mas problemático armador do time. Um jogador centralizador e individualista que, segundo as histórias, nunca conseguiu realmente se adaptar à cultura coletiva da equipe (e da cidade) de Boston. Suas declarações e críticas para a imprensa escancararam o mal estar que a franquia vivia. Quando a temporada acabou, Irving (um agente livre) não perdeu tempo em se mandar para o Brooklyn Nets apesar das promessas públicas de reassinar com o Celtics que o armador fizera oito meses antes.
E as perdas não pararam em Irving; Al Horford, o pilar e talvez jogador mais importante da equipe, também decidiu que não queria ficar e se mandou para a Philadelphia. Terry Rozier e Aron Baynes, outras partes importantes dentro e fora de quadra, também foram enviados para novos ares.
Seguindo o fiasco e as saídas de Kyrie e Horford, a diretoria do Celtics não chegou a desmontar tudo como fez o Red Sox, mas ficou claro que era hora de dar um passo para trás. O time conseguiu salvar sua intertemporada ao trazer outro armador All-Star para o lugar de Irving, fechando contrato com Kemba Walker, um jogador semelhante, mas cuja influência positiva no vestiário era o exato oposto da (suposta) influência negativa de Kyrie. Mas, fora Kemba, a maior parte dos buracos do elenco precisavam ser preenchidos por jogadores que já estavam lá, jovens que decepcionaram em 2019 ou desconhecidos. Essa grande perda de talentos, em teoria, faria com que o Celtics tivesse uma queda considerável em relação ao patamar dos principais times da NBA, não sendo mais capaz de brigar por um título.
E, novamente, o inesperado aconteceu: o novo e divertido Boston Celtics começou a ganhar muito mais jogos do que o previsto.
Talvez realmente seja ação desse fator intangível do ambiente de vestiário que voltou a fazer a diferença uma vez que os ares se limparam. Talvez o elenco seja simplesmente melhor do que o projetado após a evolução de jovens como Brown e Tatum. Talvez seja apenas benefício das flutuações normais ao longo de uma temporada. O mais provável é que seja alguma combinação dos três fatores, mas o importante para o torcedor do Celtics é que, após um ano de extrema infelicidade e decepções, ele pode voltar a simplesmente curtir uma equipe divertida, “gostável” e com a qual ele pode novamente se conectar.
Boston Strong
Apesar dos paralelos inegáveis entre a trajetória dos dois times de Boston, é difícil imaginar que a história do Celtics de 2019/20 tenha o mesmo final feliz do Red Sox de 2013. E isso se dá por dois motivos.
O primeiro, e mais simples, é que a temporada 2013 do Red Sox terminou da melhor forma possível: com um título.
O Celtics não está ainda à altura dos melhores times da NBA mesmo com esse bom basquete, e a verdade é que o beisebol é um esporte que depende muito mais do coletivo e menos das estrelas individuais. No basquete, a história ensina que é quase impossível vencer sem um dos cinco, 10 melhores jogadores do esporte; os LeBron James, Kevin Durants ou Giannis Antetokounmpos, jogadores que Boston não possui. O Celtics pode ter desafiado as expectativas até o momento, mas para chegar ao título seria preciso desafiar a própria história do esporte.
O segundo motivo, mais importante, é que o Red Sox de 2013 foi um time que transcendeu o esporte como poucos, ou talvez nenhum outro time já visto. Apenas algumas semanas após o início da temporada regular de 2013, no dia 15 de abril, aconteceu o infame atentado a bomba na Maratona de Boston, matando duas pessoas e ferindo 264. Nos dias subsequentes, a cidade viveu dias de terror, com a caçada pelos terroristas nas ruas da cidade, até que a polícia finalmente prendeu os responsáveis.
Todo esse desenrolar de eventos traumáticos deixou marcas profundas na psique de Boston, uma cidade caracterizada pela união e senso de comunidade. E conforme seus habitantes foram buscando maneiras de lidar com o ocorrido e seguir em frente, elas logo encontraram um ponto de união naquele novo: o carismático time do Boston Red Sox.
Quando o Red Sox voltou de seus jogos fora de Boston para jogar novamente no seu estádio, o Fenway Park, houve uma comovente cerimônia homenageando sobreviventes, socorristas, bombeiros, polícia e outros envolvidos no incidente da Maratona. David Ortiz, líder e ídolo máximo do elenco, tomou o microfone e fez um famoso, comovente e desafiador discurso, dizendo que essa era “A p**** da nossa cidade”, e que “ninguém vai controlar a nossa liberdade”. O discurso acabou por se tornar o símbolo do movimento Bostonstrong; e, simples assim, o Red Sox assumiu um papel de carregar nas costas não apenas as expectativas de uma legião de fãs, mas de toda uma cidade em busca de reparação e superação. Então quando o Red Sox venceu o Cardinals na World Series diante dos seus fãs para conquistar seu primeiro título em Boston depois de 95 anos, o Red Sox completou uma das maiores e mais importantes trajetórias de redenção – dentro e fora de campo – que os esportes já viram.
Então é realmente muito improvável que o Celtics, apesar de todos os paralelos, consiga seguir os passos do Boston Red Sox até o fim. Mas não importa. Esportes são, em grande medida, feitos de expectativas. Só um time pode ser campeão a cada ano, e isso não quer dizer que os outros 29 times tenham fracassado. Às vezes, é questão de subir um degrau de cada vez, e alguns degraus são simplesmente mais importantes do que outros.
Para um time cuja própria identidade vinha da sua relação com a torcida como o Boston Celtics, reconectar com ela e voltar a ter uma equipe que pudesse ser vista como uma representante da cidade era a linha que não podia ser perdida, e os esforços para reconstruir essa relação foram amplamente recompensados. Por ora, isso é o que importa.
E depois? Novas expectativas serão criadas, e talvez apenas ser carismático não seja suficiente. Mas isso fica para depois. Agora, a hora é de aproveitar um novo começo.