“Mariana Ferrer passou por tortura psicológica”, diz jurista
Em artigo, jurista Thayná Silveira destaca que caso traz à tona a banalização da palavra da vítima, onde ela é colocada “no banco dos réus”
Thayná Silveira
atualizado
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O que deveria ser uma audiência de instrução e julgamento, transformou-se em uma sessão de tortura psicológica, o que é inaceitável, além de ser um crime devidamente tipificado. Mariana Ferrer foi revitimizada pelo Estado ao ser violentada novamente, quando a cena se repetiu no bojo de um ato público. Uma mulher sozinha, quatro homens, um agressor e três operadores do direito, quem é pela vítima? Quem é por Mari Ferrer?
Ao falar da agressividade do advogado Cláudio Gastão; o cinismo escancarado do agressor, André Aranha; do silêncio do promotor Thiago Carriço; da ausência do respeito que deveria ser imposta pelo Juiz Rudson Marcos; penso sobre o pacto trazido por Hobbes em sua obra Leviatã, apontando ser o Estado o resultado do “pacto” feito entre os homens, para a sua libertação, sua salvação.
Naquele momento, no qual a vítima estava sendo trucidada pelo advogado de seu agressor e os outros operadores permaneceram calados, emerge a falha do sistema, trazendo à tona a banalização da palavra da vítima, colocando-a “no banco dos réus” e o agressor ocupando o espaço dela. Há a legitimação da conduta agressora, por meio de uma retroalimentação modelo da misoginia, do patriarcalismo, machismo que subjuga as mulheres fazendo com que assim se perpetue a violência de gênero. Nem mesmo o apelo da vítima, aos prantos, foi ouvido, o silenciamento grita violência.
A violência ali explicitada revela a urgência em estruturar uma reformulação institucional ou de falarmos de violências institucionalizadas, como também a respeito da falibilidade do Estado no tocante à reparação ou ao que se entende por justiça. Há um seletivismo judiciário sobre quem deve ser culpabilizado ou não, e, fica claro nesse caso, que o agressor, um empresário branco, não é alvo da Justiça.
É preciso pensar os ataques e o silêncio dos juristas que ali estavam como um processo de revitimização da vítima. Ela foi exposta, humilhada, revitimizada, implorou por respeito e todos, TODOS, se mantiveram calados. As fotos ali expostas pelo advogado não tinham nenhuma relação com o caso, por que não houve interferência? Como encorajar as vítimas a denunciar quando o próprio órgão judicial se coloca em posição de conivência? Em qual momento Mariana foi posta no banco dos réus? E por qual razão?
Não há previsão legal em nosso Código Penal sobre estupro culposo. Não há a possibilidade sequer de construir uma tese nesse sentido, já que se subsume em si mesmo. Modalidades culposas se consubstanciam na intenção de não querer cometer o crime, mas acabam cometendo por negligência, imprudência ou imperícia, contudo, isso não se aplica no caso de estupro. Há uma incoerência ontológica nessa “tese”, a natureza do estupro não dialoga, em nenhuma instância, com a natureza da não intencionalidade.
Quando a vítima é silenciada e não lhe é garantido o direito de se defender minimamente, já que o Estado, que deveria representá-la, não o fez, estamos diante de violência institucional, cabendo a responsabilização estatal pela permissão da ocorrência de misoginia por meio da máquina pública, corroborada pelo silêncio sepulcral de seus operadores. E também isso precisa ser discutido com seriedade, trata-se, aqui, de uma estrutura abusiva que favorece crimes e criminaliza vítimas; é preciso repensar a dinâmica jurídica do Brasil.
Atentemos ao fato de que o Brasil pode ser denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos ante a inquestionável violação de direitos humanos das mulheres respaldada em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
Pode e deve. Afinal, o que testemunhamos é um atentado à vítima, este fato fere a “Declaração dos Princípios Básicos de Justiça relativos às vítimas de abusos de poder”. Ainda que possa parecer incoerente falar de abuso de poder neste contexto, qualquer crime contra vulnerável representa um abuso de poder, afinal a vulnerabilidade da vítima coloca o agressor em posição de superioridade, seja essa simbólica, como nos casos de abusos em meios religiosos, ou concreta, como no caso em questão.
O entorpecimento de Mariana Ferrer a coloca numa posição de incapacidade de consensualidade, deixando-a completamente indefesa diante do seu agressor, que dispunha de suas capacidades preservadas, portanto, com plena consciência da ilicitude de seus atos.
*Thayná Silveira é pós-graduada em direito civil e processo civil, membra da Rede Feminista de Juristas (Defemde).