Lambança inconstitucional e desnecessária
A falta de responsabilidade no tratar de temas sérios compromete a economia do Brasil
Luiz Gonzaga Belluzzo*
atualizado
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Em meio às marchas e contramarchas da pandemia, o ministro Paulo Guedes assestou seu telescópio para vislumbrar meteoros no espaço sideral brasileiro, objetos celestes carregando as vestes de precatórios empenhados em destruir o Brasil.
Constrangido pelos desencontros da gestão orçamentária, o governo busca espaço para viabilizar despesas discricionárias. A célebre PEC do Calote reduziria o recebimento dos credores da União, impactou em 6,6% o risco Brasil (CDS), elevando o índice a 184,5 pontos (Isabela Bolzani, Folha de S. Paulo), o real desvalorizou e a taxa de juros longa foi de 9,30% para 10,52% (custo de mais de R$ 50 bi ao ano).
A afirmação “devo, não nego; pago assim que puder” reflete a postura dos que comandam a economia do país. Esse o tipo de meteoro que destroi o Brasil.
Fulminada pela mídia e sociedade, a proposta da PEC do Calote deu espaço a outras soluções, ainda mais criativas. A última delas, encorajada pelo ministro do TCU (e não do CNJ), Bruno Dantas, seria editar uma resolução do Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de por limitação ao pagamento de precatórios, alterando as regras hoje previstas na Constituição.
A hipótese de se emendar o texto constitucional por meio de resolução do CNJ para criar postergações no pagamento de precatórios dispensa comentários. O despautério só se explicaria se motivado a agradar o governo. Talvez para uma indicação ao Supremo Tribunal Federal, na vaga do aposentado ministro Marco Aurélio, dadas as dificuldades de aprovação no Senado Federal do atualmente indicado, André Mendonça?
Bem, a “lúcida proposta”, nas palavras do Ministro Guedes, claramente o agradou, pois teceu eloquentes elogios a Bruno Dantas, em evento promovido pela XP na última 5ª feira dia 26.
Já a indicação para o STF, é questionável, pois a “solução” demonstra falta de conhecimento jurídico básico. O CNJ não possui competência para alterar a lei. Muito menos a Constituição. Especialmente para postergar pagamento de precatórios, algo julgado inconstitucional pelo STF por duas vezes. A proposta foi comentada pelo presidente do STF (e do CNJ), ministro Luiz Fux, quer-nos parecer, sem ter se apercebido do descalabro sugerido.
Alteração da Constituição
Limitar pagamento de precatórios a partir do valor pago a esse título em 2017, atualizando-o até os dias presentes, seria alterar o texto do artigo 100 da Constituição, via resolução do CNJ. Criaria uma espiral postergatória no pagamento, levando-o ao infinito em poucos anos. Criaria um estoque de precatórios federais não pagos, fato inédito desde a constituição de 1934.
Em números, dos R$ 89 bilhões orçados para 2022, apenas R$ 39 bilhões seriam pagos. Uma lambuja de R$ 50 bi nas mãos do governo federal em véspera de eleição. Pudera ter recebido elogios do Ministro Paulo Guedes.
Como indicou Hipólito Gadelha, técnico consultor do Senado, em artigo veiculado no Estadão, a bola de neve se tornaria incontrolável em pouco tempo: a cada 12 anos, 30 anos de fila surgiriam. Precatórios expedidos em 2046 seriam pagos em 2082. Em menos de 10 anos, o galopante estoque de dívidas com precatórios caloteados chegaria à meteórica marca de meio trilhão de reais.
O caos dos precatórios estaduais e municipais – entes sem capacidade de emitir dívida, e com pequena parte da fatia tributária – seria ínfimo se comparado ao problema decorrente da cogitada proposta.
Note-se que o endividamento brasileiro seria impactado de qualquer maneira. A abalada respeitabilidade institucional seria desmantelada e o que foi rechaçado no formato de emenda à Constituição, emanada do Congresso, viria por resolução do CNJ! Qual a confiança no país? Para onde iriam os juros cobrados de um devedor com essas características?
Além da segurança jurídica
A questão vai muito além de uma interpretação da segurança jurídica concebida em seus termos habituais. Seria uma ecatombe instituicional, com impactos econômicos perigosissimos.
A ilusão criada em torno da causa do aumento no valor dos precatórios assusta. O ministro Guedes sabe – pois o CNJ apontou – que a causa é a eficiência do Judiciário. Sistema de precedentes, digitalização de processos e julgamentos virtuais. Fenômeno que a todos beneficia, inclusive ao governo federal.
Em 2019, houve o recebimento pelos cofres públicos de quase R$ 80 bilhões decorrentes de sentenças judiciais. Ou seja, despesas e receitas decorrentes de sentenças judiciais cresceram na mesma velocidade. Não se compreende a omissão do Executivo em reconhecer esse fato.
Se não faz diferença entrar R$ 80 bi nos cofres, será que aceitaria limitações nos valores que tem a receber, se os devedores do governo alegarem que houve “crescimento explosivo nos valores devidos ao governo”?
A falta de responsabilidade no tratar de temas sérios compromete a economia do Brasil. E a folga orçamentária pretendida estaria resolvida com a correta qualificação dos precatórios, dispensando-nos de sermos taxados de caloteiros. Precatórios são despesas que nascem com contornos de dívida, que devem ser pagas a seus credores, e ponto final.
Por isso, deveriam estar no rol das exceções (artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), das despesas que não são computadas para o limite do teto. Ideia que vem sendo positivamente recebida pelo mercado, inclusive por nomes que enxergam o tema de exclusão de verbas do teto com grande rigidez, como Pedro Parente, Eduardo Guardia, Amaury Bier, Carlos Kawall, Mansueto Almeida, Daniel Goldberg e Tiago Pessoa (todos entrevistados pelo Estadão no último dia 27).
Conceito
Precatório é como um título, decorrente de uma ação do Estado (deixar de pagar por falta de recursos, adotar medida ilegítima etc…) que se deu no passado e que foi sancionada pelo Judiciário. Este veicula o reconhecimento de uma obrigação de pagar em até 18 meses, em valor certo, definido pelo próprio Judiciário.
Judiciário manda pagar 100? É esse o montante a ser pago. Não há qualquer margem para limitação da dívida. Seja pelo Poder Executivo, seja pelo Poder Legislativo. Muito menos, pelo CNJ.
Por isso, faz sentido que tal despesa não esteja no teto de gastos. É essa a motivação da comunidade jurídica, com apoio da econômica, ao propor a inclusão de tal despesa no rol do art. 107, §6º do ADCT, que já conta com outras exceções, com as despesas não recorrentes da Justiça Eleitorial. Basta que o Congresso atue, e traga (logo, esperamos) proposta de emenda à Constituição.
Em suma, temos à nossa frente duas opções: edição de um ato pelo CNJ, incompetente para legislar, que abriria um espaço de conveniência eleitoreira de R$ 50 bilhões no orçamento de 2022; ou uma PEC vinda do Congresso, técnica e adequada à solução do problema, e que ainda geraria folga de quase R$ 20 bilhões no orçamento. Será que pelo menos uma vez esse governo aceitaria o resultado do caminho correto, ou a arrogância irresponsável prevalecerá novamente?
* Economista e professor da Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990).