Jacarezinho: o ativismo nada jurídico dos delegados e a República
Qual é a nação que desejamos construir? Qual a República que se sustenta tendo como prática a violência sistemática?
Michel Misse e Paulo Baía
atualizado
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Ainda no Brasil atual, como no passado, a pergunta que deveria ecoar em todos os ouvidos dos brasileiros é a seguinte: Quanto vale a vida de um cidadão brasileiro para o Estado? E para um delegado de polícia que o representa em suas atribuições? A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, por seus responsáveis, os delegados de polícia, está aí a afrontar a vida, as leis e a decisão do STF, como puderam constatar os moradores da favela do Jacarezinho, mais uma vez, no último dia 6 de maio. Se não, vejamos.
No Brasil Império, o chefe de polícia era, por lei, um juiz. Na falta de juízes para atender a esse imenso continente que é o Brasil, criou-se, como figura provisória, um representante do juiz, por delegação, para os municípios onde não havia juiz para chefiar a polícia. Foi com essa delegação que surgiu o original cargo de delegado de polícia.
Na República, ele continuou a ser o responsável pelo inquérito policial, cabendo aos comissários distritais a chefia de investigações e diligências cotidianas. Mais tarde, em função de sua responsabilidade jurídica no inquérito policial, determinou a lei que, em concurso público para o cargo, os candidatos a delegados de polícia deveriam ser bacharéis em direito, aprovados pela OAB.
Tudo isso, evidentemente, para garantir responsabilidade jurídica pelos procedimentos de investigação e esclarecimento dos crimes e de diligências ou operações para a incriminação dos suspeitos. Policiais bacharéis garantiriam as normas constitucionais e do processo penal.
Ao contrário de ser formado por instituições garantidoras do seu pleno funcionamento, responsáveis por torná-lo eficiente, público, e ordenador para que a Constituição que o rege seja cumprida, o que mais uma vez verificamos é uma contrafação do poder público pela violência unilateral de seus agentes, com a ideia fixa de que só pela violência ilegal é possível enfrentar bandos urbanos de pequenos traficantes armados, moradores de favelas.
É o que se tem visto no Rio de Janeiro há décadas, sem que haja qualquer avanço significativo nessa área que não seja também de tipo ilegal. Como a responsabilidade pode ser apurada, nesses casos?
Quanto vale a vida de um cidadão brasileiro para as nossas polícias e para os nossos delegados inquisidores da polícia judiciária, que até outubro de 1988 tinham o poder de decretar prisões preventivas sem limite de prazo? Talvez tenhamos que ir mais longe ao elaborar a questão.
De que material a nossa coisa pública foi e é constituída? As polícias – nós sabemos bem –, são antigas donas do açoite a escravizados, seus descendentes e pobres de maneira ampla. No Brasil contemporâneo, com sua permanente desigualdade e hierarquização social, temos facções lutando contra facções, sejam elas políticas, criminosas ou de negociantes pelos butins dos ilícitos.
Enredados nessas guerras intestinas, deixamos de olhar para a questão central – qual é a nação que desejamos construir como um projeto de República? Qual a República que se sustenta tendo como prática a violência sistemática e as sucessivas e inócuas matanças feitas pelos agentes públicos em nome do combate ao crime? A que conceito de ordem pública a mentalidade policial reinante está submetida?
Planejamento
O delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, que atuou na Operação do Jacarezinho no último dia 6/5, onde 28 brasileiros morreram, disse em entrevista coletiva que houve um planejamento de inteligência da polícia judiciária, mas que o conhecimento do território das favelas não funciona mais nas operações policiais, não diminui a letalidade, e criticou o que ele denomina de ativismo judicial contra a ação policial.
Oliveira sustentou que a operação, a mais violenta do Rio de Janeiro, não visava executar o povo favelado. Defendeu a atuação policial pois moradores das favelas estão sob o domínio do tráfico, e que em cada operação a polícia tem o intuito de salvar os moradores trabalhadores, reféns dos criminosos traficantes.
Agem com um sebastianismo militarizado, desejando libertar o povo da opressão dos traficantes. Para tanto, se morrerem brasileiros pelo caminho não há importância, faz parte da limpeza urbana de libertação, depreende-se do discurso oficial da instituição policial.
Tanto a Polícia Civil quanto o Ministério Público dizem que a operação, nomeada como “Exceptis” para ciência do eminente ministro Edson Fachin, teve como objetivo cumprir os 21 mandados de prisão expedidos pela Justiça a partir de investigações da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Estavam lutando contra o aliciamento de menores, homicídios, sumiço de corpos, roubos e “atos terroristas” contra trens da Supervia.
A resposta veio como justificativa para atender a decisão do STF, que permite operações nas favelas cariocas somente em casos excepcionais, por conta da pandemia. E receberam apoio da Associação de Delegados de Polícia, formada por todos esses bacharéis que juraram respeitar os direitos civis da população. A justificativa é que quase todas as vítimas da operação tinham alguma ficha, alguma anotação ou alguma passagem pela polícia.
Ora, presumidos bacharéis, essa justificativa para matar é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Com argumentos desse tipo, podemos concluir que os brasileiros devem respeitar as instituições de Estado, que estão fazendo o seu trabalho de caçar bandidos. Afinal, matar os brasileiros já se tornou hábito, tradição, e faz parte da política e projeto de constituição de uma nação de brasileiros. Só resta saber quantos brasileiros ainda existirão para formar tal projeto.
- Michel Misse e Paulo Baía são sociólogos, doutores em sociologia e professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)