Garota interrompida. As mulheres que somos e quem poderíamos ter sido
O machismo ameaça nossos sonhos e pode nos transformar em versões aquém de nós mesmas
Leilane Menezes
atualizado
Compartilhar notícia
Mulher, pobre e negra, Antônia dos Reis queria ser médica. A educação, porém, era um privilégio reservado aos homens – em especial aos brancos e ricos. Para elas, esperava-se que um bom casamento fizesse as vezes do estudo e do emprego.
Antônia não terminou o primário. Casou-se cedo com um marido que torcia o nariz para qualquer aspiração profissional da esposa. Isso não a impediu de ser a parteira e também a “farmacêutica” oficial da pequena Santana de Patos (MG). De seu quintal saíam as ervas medicinais que curavam a família e os vizinhos. Dezenas de livros formavam o acervo de sua biblioteca, em maior parte dedicada à saúde.
Antônia, minha avó, morreu aos 90 anos e com ela levou sua sabedoria. Quando penso nela, lembro-me com frequência de ouvir de gente próxima: “a senhora teria sido uma grande médica”. O que sempre me faz refletir sobre quantas Antônias o mundo deixou pelo caminho.
Nos últimos dias, perguntei a meninas e mulheres dos 6 aos 100 anos o que elas gostariam de ter feito e não conseguiram, em especial por questões de gênero. Neste simbólico 8 de março, reuni relatos sobre como o machismo ameaça nossos sonhos e pode nos transformar em versões aquém de nós mesmas.
Uma das respostas, em especial, me tirou o sono. América Albuquerque, 100 anos, nunca foi beijada, apesar de ter se casado aos 30 com Agnelo. Por pressão da família, aceitou o pedido do primeiro que se dispôs a levá-la ao altar. “Ele não me amava, me queria para trabalhar pra ele. Se tem uma coisa que fui obrigada a fazer por ser mulher, foi casar”, lembra.
As moças da cidade casavam-se, no máximo, aos 17 anos. América era considerada uma vergonha para a família. Então, disse sim a um boêmio da região. A festa de casamento foi numa fazenda do interior da Paraíba. De lá, o noivo, sem a delicadeza de oferecer carona à noiva, saiu montado num jumento. Ao lado dele, a pé, seguia América carregando os presentes. Ela andou por cerca de 10 quilômetros até o sítio onde viveriam.
Depois da longa caminhada, tiveram a primeira noite juntos. América orgulha-se de nunca ter sido vista nua por homem nenhum, nem o marido. Sexo só de camisola e sem orgasmo. Também não sabe o gosto que a boca de outra pessoa tem. Ouviu demasiadas vezes que alguns prazeres são permitidos somente às prostitutas, até que acreditou nisso.
Com as “mulheres da vida” Agnelo se divertia e teve incontáveis filhos fora do casamento. América tornava-se madrinha das crianças e cuidava delas, além de pajear seus 6 filhos e fazer todo o serviço doméstico. América jamais se deu conta de que isso era violência.
Ela ficou ao lado de Agnelo até que a morte dele os separou, 60 anos após o casamento. Nunca pôde trabalhar fora, pois o marido não permitia nenhuma atividade profissional. América silenciada em suas vontades e roubada de si mesma. “Queria ser professora de criança, mas ele nunca me apoiou. O que mais me machucava era ele não me ouvir”, lembra.
A morte do marido foi, por mais cruel que isso possa parecer, uma libertação. Agora, é América quem administra o próprio dinheiro e seu tempo. Vai à feira, à igreja, visita os parentes e as amigas da igreja. Coisas que antes jamais poderia fazer. A independência, porém, chegou tarde. “Quando eu tive liberdade, estava velha demais”, reclama.
Machismo é uma coisa muito errada, porque o homem quer ter mais autoridade sobre a mulher do que ela mesma. Os dois deviam ser iguais
América Albuquerque, 100 anos
América viu o divórcio se tornar uma possibilidade legal, a Lei Maria da Penha nascer e uma mulher chegar à presidência do Brasil. Assistiu netas e bisnetas conquistarem diplomas de faculdade, cargos de chefia e independência financeira. Nelas, a imagem do que poderia ter sido se reflete.