É possível separar a arte do artista?
Fãs buscam respostas sobre como devem agir quando seus ídolos se revelam pessoas diferentes do imaginado
Mariana Canhisares
atualizado
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O assédio na indústria do entretenimento não é exatamente uma novidade. Na realidade, é uma ideia popularizada pela “piada” do teste do sofá. Finalmente, a questão tomou suas devidas proporções após o escândalo envolvendo o produtor Harvey Weinstein e outros grandes nomes da indústria cinematográfica: não é mais brincadeira, é coisa séria. Com o holofote da imprensa mundial, o assédio no ambiente de trabalho, uma questão cotidiana na vida de todos nós, homens e mulheres, incentivou um debate importante e reacendeu outro, em paralelo, entre os fãs de cinema, da música, etc: é possível separar a arte do artista, a pessoa de sua obra?
A notícia de que Kevin Spacey assediou Anthony Rapp, quando ele ainda era um adolescente, rapidamente incentivou novas denúncias, inclusive no set de “House of Cards”. O premiado ator tentou se desculpar, mas a descoberta do seu comportamento inapropriado — ou, melhor, predatório — interrompeu sua carreira: ele foi dispensado da série da Netflix, e substituído no longa “Todo o Dinheiro do Mundo”, pelo qual era cotado ao Oscar.
Em parte, a atitude da Netflix foi influenciada pela repercussão na mídia: manter o ator atrelado à marca prejudicaria a imagem da empresa que, provavelmente, veria um reflexo disso nos lucros. É doloroso assistir seu personagem preferido deixar as telas, mas deve-se reconhecer que a postura adotada foi a mais responsável para garantir um ambiente de trabalho seguro. Nesse sentido, não se trata do mito do artista, mas, sim, da materialidade do profissional e do humano. Spacey deve sentir na sua carreira — e até juridicamente, se assim se desenrolarem as denúncias — as consequências dos seus atos.
Isso significa que Kevin Spacey é menos talentoso? Não necessariamente. O que mudou, de fato, foi sua imagem pública. Antes, além da sua qualidade como ator, ele era admirado enquanto pessoa, como são muitos outros neste meio. Afinal, Hollywood costuma transformar os astros em uma espécie de mercadoria, associando a pessoa diretamente ao seu trabalho. Mas, agora, no fundo, não nos questionamos sobre o valor artístico dele, mas se devemos gostar e apoiar a carreira de alguém capaz de fazer tais coisas.
Como, então, agir quando seu ídolo se revela uma pessoa diferente da imaginada?
O boicote é uma saída possível. Assim agiu a HBO. A emissora decidiu tirar todas as produções estreladas por Louis C.K. logo que o comediante admitiu ter assediado as cinco mulheres entrevistadas pelo New York Times. A distribuidora Orchard tomou atitude semelhante e deixou para trás o filme “I Love You, Daddy”, escrito, dirigido e estrelado por ele.
No primeiro momento, esta parece a atitude mais acertada. Afinal, Louis C.K. não separou a arte da sua persona artista quando constrangeu — para dizer o mínimo – as colegas de profissão. A atitude do ator, na realidade, chegou a desencorajar uma das vítimas a seguir carreira como comediante. Quer dizer, nada mais justo que ele sinta os efeitos dos seus atos na carreira. Por isso, o boicote se mostra um meio de se posicionar politicamente neste cenário e mandar uma mensagem aos estúdios: “não toleramos assédio”.
Mas, ignorar a existência dos especiais de comédia de Louis C.K. não é o único modo de lidar com as atitudes do ator. Ele construiu a carreira fazendo piadas sobre hipocrisia masculina e masturbação. Agora, mais do que nunca, as produções não serviriam como uma espécie de contexto, um indicativo sobre a origem da “inspiração” destas histórias e stand ups? E mais: uma nova chance de os fãs refletirem sobre seu ídolo e, em certa medida, sobre as próprias atitudes?
No final, não existe uma cartilha de comportamento, um gabarito com a resposta correta. Seja pelo boicote, seja revisitando as antigas obras dos ídolos, o que precisamos, cada um enquanto fã, é ver além da aura do mito, sem nos deixarmos cegar diante da nossa admiração.
Se escolhermos assistir novos filmes de Kevin Spacey, Louis C.K. e companhia, apesar das denúncias, acreditando que arte e artista — ou, em alguns casos, vida pessoal e vida profissional — são coisas distintas, a escolha deve ser consciente. Se acharmos que, naquele caso, são facetas da mesma moeda, devemos manifestar nossa insatisfação. Não se pode é deixar de reconhecer a gravidade dos relatos.
Por isso, além de refletir criticamente sobre a situação do lado de fora, que estes e tantos outros casos sirvam como um exercício de autorreflexão. Afinal, a arte imita a vida, não?
*Mariana Canhisares é jornalista e fã de cultura pop. Formada na Faculdade Cásper Líbero (SP), hoje, trabalha como repórter no site Omelete