De Silvio Almeida a Simone Tebet: a superação da ausência pela potência
Será preciso repensar e planejar um modo de governar inclusivo também do lado de dentro das repartições
Soraia Mendes
atualizado
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Nada, absolutamente nada, neste momento de inauguração de um novo ciclo democrático iniciado com a subida da rampa do Planalto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao lado do povo, em sua diversidade literal, e tendo à frente a vira-lata Resistência, é desprovido de simbolismo. Um contexto de retomada no qual foi (e é) especialmente significativo o potente discurso de posse do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida sintetizado na frase: “Vocês existem e são valiosos para nós”.
Potência é uma palavra importante e não à toa a escolhi para me referir à manifestação de Almeida. Em verdade, mais do que uma adjetivação, ela expressa um conceito que opõe o paradigma da potência ao paradigma da ausência, perceptível nas narrativas em que as pessoas, coletividades, grupos, povos são identificados como “desprovidos”, “desfavorecidos”, “desprivilegiados”, “pauperizados”, “marginalizados”, “excluídos”, “carentes” ou, como digo eu em meus escritos, “vulneráveis”
Sob a perspectiva da análise de territórios, como as favelas, por exemplo, a ausência define o não reconhecimento de táticas e estratégias que moldam a vida longe das referências sociais, culturais, políticas e estéticas hegemônicas. E tenho que, em termos de teoria do conhecimento, a ausência marca a tentativa, sempre presente e resistente de parte das elites epistemologicamente eurocentradas, de sufocar de formas de pensar criticamente os problemas brasileiros e de criativamente apresentar soluções para eles.
O discurso do ministro é, portanto, potente, porque, ao final, traz consigo uma convocatória para que as mulheres, o povo negro, a comunidade LGTBI+, as pessoas com deficiência, os povos indígenas apresentem suas reivindicações, mas também possam dizer como estas devem ser atendidas. Ou seja, não se trata de um governo voltado a trabalhar “para” o povo, mas “com” o povo.
Refletindo sobre ausências e potências, me calhou meditar um pouco sobre uma manifestação da ministra Simone Tebet da última quarta-feira (4/1), dia anterior de sua também concorrida posse.
Diferentemente de Almeida, Tebet aceitou o desafio de desbravar um terreno árido no qual, internamente em sua composição de equipe, o discurso sobre diversidade, igualdade e paridade, tão utilizado por ela durante a campanha presidencial, anda no fio da navalha, eis que o Ministério do Planejamento é uma área técnica e marcadamente masculina.
Diversidade
Perguntada sobre a formação de sua equipe Tebet respondeu que objetiva “prezar acima de tudo pela diversidade”, e que o corpo técnico não deve “só ter mulheres, mas mulheres pretas”. Todavia, ela também disse que é difícil compor essa representatividade feminina em Brasília, pois “lamentavelmente, mulheres pretas normalmente são arrimo de família” e os valores pagos são muito baixos.
A agora já empossada ministra do Planejamento tem razão. E com sua constatação retira o véu sobre uma ausência que precisa ser transformada em potência.
Diferentemente do que mostra o noticiário político nacional, Brasília é bem mais do que a Esplanada dos Ministérios, o Lago Sul onde festas milionárias são oferecidas, ou mesmo as moradias que se distribuem pelas duas Asas (sul e norte), idealizadas por Lúcio Costa e lindamente ornadas pelos prédios desenhados por Oscar Niemeyer.
O Distrito Federal, para além do caríssimo Plano Piloto, é composto por distantes e empobrecidas regiões administrativas nas quais o transporte público é de péssima qualidade, o saneamento e a infraestrutura são precários e a segurança (especialmente para mulheres em situação de violência) é escassa.
De outro lado, segundo mostra a Tabela de Remuneração dos Servidores Públicos Federais Civis e dos Ex-Territórios nº 81 de novembro/2021 (a última até agora disponível), os cargos em comissão no serviço público federal variam de R$ 2.701,46 a R$ 16.944,90.
Desnecessário dizer que a grande maioria dos cargos não está no patamar mais alto. E ainda que assim fosse, por óbvio, o valor básico da remuneração seria desestimulante (ou melhor seria dizer, impeditivo) para qualquer mulher – em particular, negra – possuidora de todos os critérios técnicos exigidos em uma pasta como o planejamento. Não! Não se pode exigir das mulheres abnegação sacerdotal após estabilizar-se na iniciativa privada vencendo todos os obstáculos de um mundo corporativo racista e sexista.
Por outro lado, se para um homem mudar-se para Brasília, em regra sem a família, auferir rendimentos, digamos em torno de R$ 5.685,55 (equivalente a um DAS 3) é o suficiente para sua viver com relativa dignidade, para uma mulher, com filho/a(s), que precisará no mínimo de uma moradia com dois quartos, equipamento de creche e/ou escola e transporte público, sua “sobrevivência” é inviável.
Em síntese, da ponta mais alta à mais baixa da tabela de remuneração dos cargos comissionados, o que se vê é que diversidade e paridade dependem do reconhecimento de que mesmo sendo numericamente iguais os salários, as condições para as mulheres são de desigualdades gritantes.
Costumamos pensar em governo a partir daquilo que ele mostra ao povo. Contudo, um governo também tem de ser analisado a partir de suas estruturas internas. Por isso, propositadamente ou não, a ministra acertou no alvo. Na prestação de um serviço público de natureza técnico-política, salário igual não é garantia de igualdade!
Mudar esse quadro exigirá mais do que reconhecer a ausência e resolvê-la a partir de seu próprio paradigma, por exemplo, com a decisão de contratar mulheres somente em Brasília ou em condições de sustento com os valores baixos pagos. Será preciso criatividade e disposição para o conflito interno.
Ou seja, será preciso repensar e “planejar” um modo de governar inclusivo também do lado de dentro das repartições. É o que os novos tempos exigem: constatar a ausência e transforma-la potência.
- Soraia Mendes é jurista, doutora em direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em teorias jurídicas contemporâneas, mestra em ciência política, com atuação e obras reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos