José Dirceu: da tragédia gaúcha pode sair um programa regional de desenvolvimento
Questões relativas ao desequilíbrio climático têm de ser vistas como condição basilar em qualquer tipo de planejamento
José Dirceu
atualizado
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O desastre que atinge o Rio Grande do Sul pode ser um importante catalizador para a elaboração de um plano regional de desenvolvimento que tenha como pilar a emergência climática e esteja inserido num programa de desenvolvimento nacional. Como todos os momentos críticos, as enchentes no território gaúcho despertaram a generosidade do povo brasileiro.
As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, na pior tragédia já registrada na história do Estado, com mais de 100 mortos, muitos desaparecidos, 395 mil desabrigados, 431 municípios afetados (86% do total), envolvendo 1,4 milhão de pessoas e um enorme prejuízo econômico, é mais que um alerta para a sociedade brasileira. Todos, governos e legislativos, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, e sistema de Justiça precisam se conscientizar de que não é possível mais desconsiderar a emergência climática.
As questões relativas ao desequilíbrio climático provocado por dezenas ou centenas de anos de agressão do homem à natureza têm de ser vistas como condição basilar em qualquer tipo de planejamento, em qualquer obra de infraestrutura. Muito mais acurada precisa ser a atenção dos legisladores ao tratar das questões do meio ambiente.
Não há dúvidas sobre erros de gestão e provavelmente de vários governos, como revela o próprio caso do Rio Grande do Sul – segundo a Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente, o governador Eduardo Leite, do PSDB, cortou ou alterou, em 2019, 280 pontos da legislação ambiental para torná-la mais flexível. E, de acordo com denúncia de técnicos do Departamento de Água e Esgoto da Prefeitura de Porto Alegre, a administração não fez a manutenção preventiva do sistema de comportas do rio Guaíba, que é sofisticado. Não fazer a manutenção foi uma decisão gerencial e não falta de dinheiro, pois o departamento deu lucro.
A conta da falta de planejamento e mesmo do descaso provocado pela visão neoliberal de que o objetivo de cada unidade da gestão pública é mostrar eficácia e dar lucro não pode ser debitada só aos governadores, prefeitos e seus secretários. Ou aos presidentes da República e seus ministros. Os legisladores – senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores – têm grande culpa no cartório.
São eles autores de muitos projetos de lei que flexibilizam a legislação ambiental a pretexto de permitir maior dinamismo à atividade econômica, mas são medidas que, no médio prazo, acabam agravando ainda mais a emergência climática e comprometendo a qualidade de vida de toda a população. Por isso, é muito importante a tomada de consciência por parte de toda a sociedade dos graves problemas envolvidos com a emergência climática.
Mobilização social
O desastre que atinge o Rio Grande do Sul pode ser um importante catalizador para a elaboração de um plano regional de desenvolvimento que tenha como pilar a emergência climática e esteja inserido num programa de desenvolvimento nacional. Como todos os momentos críticos, as enchentes no território gaúcho despertaram a generosidade do povo brasileiro. E atraíram o apoio decisivo do governo federal que mobilizou todos os seus ministérios e as Forças Armadas e recursos para o atendimento emergencial e a reconstrução do estado da ordem de R$ 60 bilhões, de vários governos estaduais e até de países vizinhos, sem falar nos milhares de voluntários que trabalharam e trabalham no resgaste de pessoas e mesmo de animais; na distribuição de alimentos, roupas, água e artigos de higiene; nas cozinhas comunitárias (os movimentos sociais previam montar dez cozinhas na capital e interior e várias delas já estavam em funcionamento no final de semana do Dia das Mães).
É preciso aproveitar esse espírito de solidariedade e compreensão da gravidade da situação da emergência climática para dar um salto de qualidade no planejamento para superar a crise. O programa de reconstrução implica ser um programa de desenvolvimento regional que envolva todos os atores – governos, empresários, trabalhadores, movimentos sociais – e parta da constatação de que é preciso aprender com os erros do passado. E de que não haverá futuro possível para as novas gerações se prevalecer a lógica neoliberal de destruição contínua da natureza, desregulação, especulação imobiliária correndo solta e ampliação das áreas de plantio do agronegócio sem respeito ao ecossistema.
Já existem vários grupos mobilizados discutindo a reconstrução do estado gaúcho. Um deles é formado por docentes da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRJ que lançou um manifesto, apoiado por professores de faculdades de Economia de várias partes do país, com medidas que consideram importantes para o Rio Grande do Sul conseguir superar a tragédia das enchentes de 2024. Na avaliação desses professores, entre outras causas, as enchentes também foram consequência no elevado nível de endividamento do estado e de seu baixo nível de investimento – R$ 1 bilhão/ano, quando deveria ser de R$ 6 bilhões a R$ 8,5 bilhões/ano.
Entre as medidas, propõe o manifesto:
• Suspensão do pagamento do principal e do serviço da dívida do Estado para com a União, com sua imediata reestruturação;
• Criação do Fundo Constitucional da Região Sul para a Mitigação dos Riscos Climáticos (Fundosul);
• Capitalização do BRDE, do Badesul e do Banrisul;
• Elaboração de Programa Federal para Reestruturação de Dívidas Privadas Junto ao Sistema Financeiro Nacional;
• Criação da Fundação de Estudos Estratégicos do Rio Grande do Sul (FEE-RS);
• Revisão da Política de Incentivos Fiscais;
• Fortalecimento e redirecionamento das ações de instituições públicas;
• Estabelecimento de novos marcos legislativos;
• Ampliar a capacidade de estados e grandes municípios de investir em infraestrutura;
• Redesenhar instrumentos de financiamento existentes;
• Recalibrar instrumentos financeiros existentes e explorar novas oportunidades;
• Regulamentar mecanismos previstos na recente reforma tributária;
• Ampliar a discussão técnica sobre os impactos ambientais dos grandes projetos de infraestrutura;
• Induzir processos que resultem em maior conhecimento na sociedade sobre a gravidade da crise climática e envolvê-la na construção de soluções compartilhadas.
É claro que nem tudo é solidariedade. Há os oportunistas de sempre da extrema direita querendo se aproveitar da tragédia para espalhar notícias mentirosas para enfraquecer o governo federal e desacreditar as ações de apoio e solidariedade. A resposta da Secretaria de Comunicação do Governo tem sido objetiva e direta. Considero, no entanto, que há casos que só a coerção judicial resolve, pois são meliantes de carteirinha.
Muita água
Como se trata de uma proposta de economistas, as medidas referentes ao meio ambiente são genéricas, como era de se esperar. Mas não podem ser encaradas como secundárias. As fortes enchentes são consequência sim de um efeito sistêmico do desmatamento na Amazônia, que vem prolongando as secas e tornando mais severas as enchentes. Mas são só. Em entrevista ao canal Tutameia, o historiador gaúcho Tau Golin mostra como a topografia regional tem forte presença de águas na parte Leste do estado e como a ação do homem foi provocando o assoreamento dos rios e lagoas, impedindo as águas de correrem para o mar.
No século XVIII, o Rio Grande do Sul era chamado pelos viajantes de Rio Grande das Águas, porque a região do estado próxima ao litoral, tem água em profusão: Lagoa dos Patos, Lagoa Mirim, Lagoa Jaguarão, e os muitos rios que as alimentam, entre eles o Guaíba e o Jacui. O que aconteceu, lembra Golin, é que as barras naturais que se formavam levando as águas da lagoa para o mar foram desaparecendo com o aumento da área plantada de arros, a construção de estradas etc. Paralelamente, com o assoreamento dos rios, em função da degradação ambiental pelo corte de árvores, etc, as lagoas também foram tomadas por bancos de areias diminuindo a vazão das águas. Como os rios correm do planalto para a planície das lagoas, as águas ficam represadas. A depender dos ventos, diz ele, no lugar de sair, voltam sentido inverso, provocando e mantendo as enchentes.
Golin, que também é velejador e conhece profundamente a bacia hídrica da região da Lagoa dos Patos, comenta que é preciso tratar seriamente a questão do assoreamento os rios e lagoas em qualquer plano de reconstrução. Embora ache difícil se conseguir um recuo das áreas ocupadas pelo agronegócio na produção de arroz ao redor da Lagoa dos Patos, ele está convencido que sem barrar o assoreamento dos rios e lagoas será difícil conter as enchentes.
São ideias a serem discutidas pela equipe ou equipes multidisciplinares do plano de reconstrução que, espero e desejo, seja um programa de desenvolvimento regional que provoque um novo programa de desenvolvimento para o país. Grandes crises trazem grandes desafios. Espero que a tragédia que se abate sobre o Rio Grande do Sul nos coloque na rota certa.
* José Dirceu é ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado federal e ex-deputado estadual pelo estado de São Paulo