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Às mulheres vítimas de agressão, que sejam inteiras novamente em 2018

4,4 milhões de mulheres são agredidas todo ano. Afinal, quando isso vai mudar?

Autor Leilane Menezes

atualizado

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Rafaela Felicciano /Metrópoles
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1 de 1 bianca21 - Foto: Rafaela Felicciano /Metrópoles

Falta um pedaço de Bianca*, 22 anos. Ela começará 2018 sem um dente. O namorado, o diplomata Renato de Ávila Viana, arrancou-o com uma cabeçada, durante uma briga. Há 1 ano, Bianca chora quando não consegue sorrir sem esconder a boca com as mãos.

Tudo que ela deseja é ser inteira outra vez. Mulheres vão ajudá-la nessa missão de se reconstruir. Servidoras do Ministério das Relações Exteriores (MRE), onde o agressor de Bianca trabalha, criaram uma “vaquinha” virtual para custear o tratamento dentário da jovem, orçado em quase R$ 60 mil.

Na certidão de nascimento, Bianca não tem esse nome. Pediu para ser chamada assim na reportagem do Metrópoles, que revelou o caso, para preservar sua identidade. Ela escolheu a alcunha em homenagem à atriz Bianca Bin, que vive a personagem Clara, na novela “O Outro Lado do Paraíso”. A protagonista apanhou do marido e busca vingança. A Bianca da vida real, porém, só deseja paz, justiça e reparação.

O MRE exonerou o diplomata do cargo de confiança ocupado por ele. Ainda é pouco, quase nada, mas, como diria Bob Dylan, é um sinal de que “the times they are a-changin”. Os tempos estão mudando – no gerúndio e devagar – em Hollywood, na Globo e para as Biancas.

Em 2018, desejo que os ventos mudem de direção também para a diarista Maria*. Aos 36 anos, o corpo dela pede socorro. Seus olhos, antes acolhedores, agora estão perdidos. Buscam morada no vazio. A boca, órfã de sorriso, lhe confere um semblante duro. Os cabelos perderam o brilho, até começarem a cair. O apetite desapareceu, como sintoma da falta de vontade de comer a vida.

Poderiam ser sinais de enfermidade, mas a doença de Maria tem nome de homem: João. O padecimento físico é reflexo de anos de agressão. A cada dia, o marido de Maria a mata um pouco.

Ela casou-se aos 15 anos e, com 36, não sabe como ser dona da própria vida. Ele a proibiu de usar o WhatsApp, ameaçou tirar dela os filhos, a casa, a dignidade, se a mulher fosse embora. Dormiu com outras, deixou os vizinhos saberem, bateu em Maria, mas se recusa a dar o divórcio àquela que lava suas camisas, passa até cuecas e lhe serve o prato à mesa. Ela deve ficar, como se tivesse dito “sim” à tortura eterna quando subiu ao altar.

O marido de Maria odeia a família dela. Nada presta no barro do qual ela foi feita. As irmãs, primas, amigas e a mãe são todas “vagabundas”. Ele a desvaloriza como profissional. “Você se acha porque tem um trabalho, mas, quando esse menino crescer, tudo acabará. Você é um lixo”, disse à esposa, que também trabalha como babá.

Maria rala de sol a sol para pagar as prestações da casa própria e o material escolar dos filhos, contas que o homem se recusa a dividir. O primo de João matou a mulher, encerrou sua história como se ela fosse um personagem de ficção e ele o autor, cansado de escrever. Maria teme o mesmo fim.

Joana*, uma professora, de 26 anos, era saudável até conhecer Flávio. Após o casamento, ele colocou um rastreador no carro dela, sem que Joana soubesse. Também instalou um gravador de voz no veículo, para ouvir as conversas da mulher com as amigas. Nenhum dia se passa sem que ele diga o quanto Joana tem sorte de ele estar com ela.

“Eu nem queria casar, você me convenceu”, diz o marido troféu. Joana entristeceu, assim como Maria, perdeu os cabelos, o brilho, o desejo de existir. Não tem força para ir embora. Cada passo para longe de Flávio a afasta do sonho que idealizou.

A cada hora, 503 mulheres são vítimas de violência no Brasil. Oficialmente, são 4,4 milhões de Marias, Biancas e Joanas por ano. Fora dos dados, elas chegam a 19,9 milhões, graças ao silêncio que esse crime impõe.

Entre as entrevistadas, 61% afirmaram conhecer as pessoas que as agrediram e 43% das ocorrências foram na própria casa. A maior parte das violências relatadas ocorreu com mulheres negras (32%) – como Maria – e pardas (31%) – a exemplo de Bianca. Entre as brancas, as quais Joana representa, o índice é de 25%.

Dois terços da população presenciaram uma mulher sendo agredida de forma física, verbal ou psicológica no último ano, segundo o levantamento. Ano a ano, essas estatísticas aumentam ou se repetem. Que em 2018, Biancas, Marias e Joanas – ricas, pobres, negras, brancas, jovens, velhas, sem filhos ou mães –, em lugar de julgamentos e opressão, encontrem uma mão amiga para acompanhá-las rumo à libertação do que as despedaça.

“Juntem-se, pessoas, onde quer que estejam

E admitam que as águas à sua volta estão subindo

E aceitem que logo vocês estarão cobertos até os ossos

Se para vocês, seu tempo vale a pena ser poupado

Então, é melhor que comecem a nadar ou afundarão como pedras

Pois os tempos estão mudando

Venham escritores e críticos, que profetizam com suas canetas

E mantenham seus olhos abertos, a chance não virá novamente

E não falem sem pensar, pois a roda ainda está girando

E não há como dizer quem será nomeado

Pois o perdedor de agora mais tarde vencerá

Pois os tempos estão mudando

Venham senadores, deputados, por favor escutem o chamado

Não fiquem parados no vão da porta, não congestionem o corredor

Pois aquele que se machuca será aquele que nos impediu

Há uma batalha lá fora, e ela não vai parar

E logo ela irá balançar suas janelas e fazer ruir suas paredes

Pois os tempos estão mudando

Venham mães e pais de todos os lugares

E não critiquem o que vocês não conseguem entender

Seus filhos e filhas estão além de seu comando

Seu velho caminho está rapidamente envelhecendo

Por favor saiam da frente se não puderem ajudar

Pois os tempos estão mudando

A linha está traçada e a maldição está lançada

E o mais lento agora será o rápido mais tarde

Assim como o presente de agora será mais tarde o passado

A ordem está rapidamente se esvaindo

E o primeiro agora será o último depois

Pois os tempos estão mudando” ,

The Times They Are a-Changin’ (Bob Dylan)

*Nomes fictícios a pedido das bravas mulheres reais que ilustram esse texto

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