Ainda existem bons e corajosos magistrados no Brasil
STJ estabeleceu a obrigatoriedade de observância das formalidades trazidas pelo reconhecimento fotográfico de suspeitos de crimes
Flávia Guth
atualizado
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Luiz Carlos Justino, violoncelista, 23 anos. Antônio Cláudio Barbosa de Castro, borracheiro, 35. Douglas da Mata dos Santos, auxiliar de logística, 30. Danilo Felix Vicente de Oliveira, auxiliar administrativo, 25. O que essas pessoas têm em comum? Todos foram presos por engano, em razão de errôneo reconhecimento fotográfico. Antônio Cláudio foi inocentado 4 anos e 11 meses após ter sido preso.
O problema do encarceramento de pessoas inocentes em razão de reconhecimento fotográfico equivocado foi tema de um dos vários julgamentos históricos proferidos pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O ministro Rogério Schietti Cruz, relator do feito, segue cravando marcos na defesa dos direitos humanos no Processo Penal brasileiro. Em setembro, o ministro concedeu habeas corpus a paciente, com extensão coletiva a condenados em mesma situação, para afastar o regime fechado de cumprimento da pena quando se tratar de tráfico privilegiado.
No julgamento de 27 de outubro de 2020, o ministro Schietti relatou o Habeas Corpus nº 598.886/SC, no qual estabeleceu a obrigatoriedade de observância das formalidades trazidas pelo artigo 226 do Código de Processo Penal, para o reconhecimento de pessoas suspeitas de crime. Aliás, antes de passarmos à análise do caso, é de se ressaltar a relevância da atuação da Defensoria Pública dos estados nos casos mencionados, pois as teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça foram desenhadas a partir do formulado pelos defensores públicos.
E mais. No julgamento, o Innocence Project Brasil, organização cuja finalidade é o enfrentamento da grave questão das condenações de inocentes no Brasil, dirigida por Dora Cavalcanti e Flávia Rahal, duas das maiores criminalistas do país, teve papel importantíssimo na vitória histórica, ao revelar estudos conclusivos no sentido da falibilidade dos sentidos humanos e da cognição, que conduzem a reconhecimento fotográfico errado e a condenações de inocentes.
O debate travado pela 6ª Turma do STJ dizia respeito à interpretação conferida ao artigo 226 do Código de Processo Penal e a possibilidade de que o reconhecimento fotográfico realizado na fase do inquérito policial fosse apto a identificar o réu como autor do crime imputado. A jurisprudência das duas turmas criminais do STJ não é exatamente unânime quanto ao tema.
Algumas decisões convergem no sentido de que só seria possível considerar o reconhecimento fotográfico como meio idôneo de autoria se observadas as formalidades legais e confirmado por outras provas colhidas na fase judicial, sob a observância da ampla defesa e do contraditório. Contudo, há decisões no sentido de se aceitar o reconhecimento fotográfico do suposto autor do delito, mesmo sem a observância das formalidades do artigo 226 do Código de Processo Penal, em caso de determinação de prisão preventiva, por exemplo.
E para além da discussão técnica sobre a interpretação do artigo 226 do CPP, o il. ministro Rogério Schietti trouxe importante elemento para compreensão da gravidade do que acontece nas ações penais cujas sentenças condenatórias têm, como fundamento confirmatório de autoria, o reconhecimento fotográfico: a falibilidade da memória humana. O ministro relator apontou que o reconhecimento é um “juízo psicológico de identidade estabelecido por alguém, mediante método comparativo entre uma percepção presente e outra ocorrida ou vivida no passado”.
O ministro ressaltou que esse mecanismo não é isento de erros e que um fato lembrado pode, sim, ser distorcido. Dessa forma e segundo estudos feitos no Brasil e no exterior, o reconhecimento equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário, “com a consequência – deletéria e muitas vezes irreversível, diga-se – de levar pessoas inocentes à prisão”.
Os números trazidos por inúmeras pesquisas e por organismos nacionais e internacionais são aterrorizantes e revelam o altíssimo percentual de erros judiciais cometidos, tendo por fundamento o reconhecimento fotográfico falho. E não por acaso o perfil desses vitimados pelo sistema é o mesmo: pretos, pobres e de baixa escolaridade, o que revela evidente racismo estrutural.
Não é demais lembrar que o ministro Rogério Schietti também foi relator do Habeas Corpus nº 232.960/RJ, oportunidade em que o referido magistrado apontou a necessidade de contraditório sobre o reconhecimento de foto e necessidade de outras provas judicializadas, suficientes a darem suporte à ação penal. Veio à tona, assim, a discussão sobre reconhecimento por foto e facial digital de rostos negros.
Muitos são os estudos e até mesmo manifestos que apontam a existência de premissas racializadas em inteligência artificial que identificam a negritude como se corpos únicos fossem. No Brasil, pesquisa da Rede Observatório de Segurança mostrou que mais de 90% de prisões determinadas com fundamento em reconhecimento facial são de negros.
A importância do julgamento do dia 27 de outubro e o impacto que diretamente trará na atividade policial e na qualidade das provas produzidas é imensurável. Reconhecimentos pessoais devem, portanto, seguir o que determina a lei, com observância do procedimento legal.
O reconhecimento fotográfico foi restringido para mera etapa antecedente a posterior reconhecimento presencial, que deverá ser um elemento de um conjunto probatório. Conforme ressaltado pelo próprio ministro relator durante o julgamento, deve haver uma urgente mudança de postura dos órgãos de investigação – polícias civil e federal – e do Ministério Público, além de respeito ao Código de Processo Penal.
Ainda existem juízes em Berlim.
(*) Flávia Cardoso Campos Guth é advogada criminalista com especialidade em Tribunais Superiores