Advocacia em risco
Profissionais tiveram que se adaptar a sistemas de peticionamento e gerenciamento eletrônicos, sem tempo, estrutura e apoio necessários
Thais Riedel
atualizado
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Advogar é cuidar do direito de outra pessoa. É um valoroso mister que exige muito compromisso, responsabilidade, conhecimento técnico, condições de trabalho e respeito às prerrogativas profissionais. Mas não tem sido fácil exercer a profissão em meio a tantos riscos a que somos submetidos atualmente.
Riscos no sentido de alta probabilidade de violação, tanto dos direitos dos clientes quanto da própria dignidade das advogadas, dos advogados e de suas famílias.
A pandemia de Covid-19 expôs ainda mais uma realidade de contrastes sociais e vem deixando dolorosas cicatrizes nas relações humanas. As diversas e necessárias medidas adotadas pelas autoridades do mundo para conter e desacelerar a propagação da doença e evitar mortes impuseram a todos novos comportamentos sociais e realçaram a imprescindibilidade de um Estado mais atuante e necessariamente voltado aos direitos sociais.
De um dia para o outro, o que se previa para o futuro foi compulsoriamente antecipado. A pandemia precipitou algumas mudanças já em curso, mas até então incipientes, como por exemplo o trabalho remoto, a educação a distância e a intermediação monetária on-line. A nova realidade também resgatou o compromisso social solidário e mostrou a necessidade de maior humanização nas empresas.
No meio jurisdicional, prazos foram suspensos, bem como audiências e julgamentos. Em seguida, a virtualização passou a ser a regra. E os advogados, diante do necessário distanciamento social, trocaram seus escritórios e a presença nos tribunais pela atuação judicial por meio de instrumentos eletrônicos, por vezes o próprio celular.
A rotina familiar e a intimidade dos advogados foram subitamente alteradas e, repetidas vezes, adentraram reuniões virtuais durante sessões de julgamento on-line. Lives jurídicas ganharam espaço cativo no fim das nossas tardes, e a tecnologia nunca foi tão necessária para reduzir a distância entre os advogados, clientes e a própria jurisdição.
E nisso, como ficou a advocacia? Na prática, teve de se adaptar, a fórceps, aos mais diversos sistemas de peticionamento e gerenciamento eletrônico de processos, dependendo de cada tribunal. Sem o tempo, a estrutura ou o apoio necessários, teve de se adaptar ao acompanhamento remoto de seus processos e ao contato virtual com clientes, juízes, ex adversus, órgãos da administração e tudo o mais que presencialmente fazia parte da profissão.
A imposição dessa nova realidade, não há dúvida, comprometeu em muito as prerrogativas profissionais da advocacia, diariamente violadas pela dificuldade de acesso à magistratura e de formalização da instrução probatória necessária à garantia do direito dos seus clientes.
Vemos diariamente advogadas e advogados, das mais diversas idades e condições sociais, adoecendo. Alguns sacrificando suas vidas, sem a necessária proteção social ou institucional.
É chegada a hora de cuidar, nesta nova realidade, dos profissionais da advocacia, indispensáveis à administração da Justiça! Para superação das dificuldades ao exercício da profissão de forma digna, esse cuidado envolve, certamente, trabalhar pela Previdência dos profissionais da advocacia. É preciso que esses nobres combatentes do direito estejam devidamente preparados para momentos de crise como os atuais.
Quando presidi a Comissão de Seguridade Social na OAB-DF (2013-2018), surpreendeu-me a grande quantidade de advogados que não se preocupava ou não se prevenia para situações de risco. Não me esqueço de uma audiência pública em que perguntei a um auditório lotado quantos ali contribuíam para Previdência pública ou privada. Pouquíssimos levantaram a mão. Imediatamente, iniciamos uma campanha de conscientização da classe e firmamos acordo com o INSS para aprimorar o atendimento aos advogados.
Mas é necessário avançar bem mais!
Momentos de crise, em que faltam empregos, clientes e mesmo saúde para o exercício de profissões liberais, como é essencialmente a nossa, evidenciam ainda mais a necessidade de mínima proteção ao advogado. Hoje, muitos profissionais e, consequentemente, seus familiares, passam sérias provações por não estarem preparados para riscos sociais, como o desemprego, a maternidade, doenças ou mesmo situações de morte. Precisamos, mais do que nunca, criar mecanismos de orientação, de facilitação e de apoio à advocacia militante, cuja dignidade merece ser enaltecida.
É também essencial que a advocacia se mobilize contra a violação de suas prerrogativas, agravadas ainda mais em tempos de “Judiciário on-line”. São muitos os problemas existentes. Não se consegue falar com os magistrados. Há a protelação de audiências de instrução. A advocacia iniciante carece de estrutura física e tecnológica. Faltam cursos e suporte adequados para atualização dos advogados às novas tecnologias. Em resumo: carecemos de uma rede eficiente de proteção para a advocacia.
Especialistas afirmam que mais de 60% das profissões do futuro ainda não existem e que muitas das atuais serão extintas. Esse não será o caso da advocacia! Somos os defensores do Estado Democrático de Direito, e nossa missão, sobretudo pelos aspectos intelectuais, nunca poderá ser substituída por máquinas, por mais que a tecnologia avance e possa nos ajudar.
Afinal, é por meio dos advogados que as instituições se humanizam, que se garante os valores democráticos e que se defende a sociedade. Nossa voz representa vozes de pessoas físicas e jurídicas frente ao Estado, sendo, muitas vezes, a última esperança de garantia de seus direitos.
Para a nossa sobrevivência, urgem união, ação e empatia. Somente pela percepção das dificuldades e dos sofrimentos uns dos outros e da necessidade de valorização da nossa profissão é que poderemos nos unir em propósitos, ideias e projetos e, assim, contribuir para o processo civilizatório, para o qual a advocacia sempre foi relevante e protagonista.
Hoje a advocacia está em risco. Porém, olhando o passado e conhecendo a nossa história, tenho certeza de que vamos virar este jogo.
* Thais Riedel é advogada, professora e cientista política