Adeus, Philip Roth: morre o maior escritor norte-americano
Com 31 obras publicadas e 3 alter egos, o escritor retratou boa parte da sociedade norte-americana
Paulo Paniago
atualizado
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Ele dizia na literatura que “envelhecer é um massacre”, mas a cada entrevista, ao ser confrontado com a ideia de morrer, Philip Roth afirmava estar se sentindo muito bem e feliz com a vida. A obra toda foi a ênfase desse conflito gritante e talvez o mais contundente que é preciso enfrentar: a luta da vida contra a morte e a recusa em aceitar de antemão que esta última sempre vence. Os fiéis leitores lastimaram quando ele anunciou a aposentadoria, em 2010, terminando a jornada com quatro pequenas obras não menos inquietantes do que a totalidade dos livros: 28 romances e um de contos, além de dois outros de não ficção.
No meio dessa vastidão concentrada, Roth criou três alter egos. David Kepesh, um professor de literatura, aparece em três deles. “Philip Roth” (isso mesmo, ele fez de si um alter ego, o que levanta questões praticamente infinitas a respeito do alcance de um escritor, inclusive nas discussões concernentes à autoficção) comparece em cinco livros. Porém, o mais duradouro foi Nathan Zuckerman, que aparece em nove romances, o primeiro deles chamado O Escritor Fantasma (1979) e, o último, Fantasma Sai de Cena (2007).O primeiro livro que publicou foi de contos, Adeus, Columbus (1959). Causou choque na comunidade judaica. Isso porque os personagens recebiam tratamento humano e complexo, sem qualquer favorecimento. Na sequência, escreveu romances, o gênero predileto. Roth havia escrito dois livros bons, mas ainda insuficientes para chamar a atenção de todo mundo fora da comunidade religiosa-cultural, até que veio O Complexo de Portnoy (1969), em que o personagem Alexander Portnoy está no analista e relata a própria compulsão masturbatória.
Foi um choque, mesmo que o país estivesse vivendo anos de revolução sexual da contracultura. Acontece que a atenção despertada por esse livro poderia ter feito o escritor entrar numa rotina de produzir sempre sátiras, e o que ele fez foi aprofundar as discussões cada vez mais, apertando os parafusos de uma obra inquietante e desafiadora, a ponto de agora muita gente dizer que morreu o principal escritor norte-americano. Fato.
Entre os prêmios, faltou o Nobel, por birra insensata da Academia sueca. Mas recebeu todos os outros importantes, inclusive um dos maiores reconhecimentos que se pode ter, a publicação da própria obra ainda em vida pela Library of America.
No centro das discussões desencadeadas por Roth, está a liberdade do indivíduo diante da força das circunstâncias. A limitação da contingência nunca vai impedir um personagem de continuar tentando. Em A Marca Humana (2000), Coleman Silk, um professor de literatura clássica negro, de pele muito branca, se disfarça de judeu. Ironicamente, sua queda acontecer num episódio em que o politicamente correto dá as cartas e envolve justamente suposto preconceito racial.
Roth é uma das expressões mais contundentes do individualismo moderno e, não tivesse se tornado romancista, poderia ser pensador polêmico e ensaísta, daqueles capazes de gerar intensos debates por onde passa e espalha a marca. Aliás, é sobre isso a obra inteira. A marca do conflito entre indivíduo e comunidade, a marca da distinção por pertencer a um povo sempre falado e apontado e perseguido, a marca humana que é possível deixar atrás de si. Título do romance que trata exatamente dos vestígios que o humano é capaz de produzir, A Marca Humana tem um trecho bastante explicativo. “Nós deixamos uma marca, uma trilha, um vestígio”, diz uma personagem do livro chamada Faunia. “Impureza, crueldade, maus-tratos, erros, excrementos, esperma – não tem jeito de não deixar. Não é uma questão de desobediência. Não tem nada a ver com graça nem salvação nem redenção. Está em todo mundo. Por dentro. Inerente. Definidora. A marca que está lá antes do seu sinal.”
Um dos mais destacados romances é O Teatro de Sabbath (1995), em que o personagem Mickey Sabbath entra numa espiral delirante de enlouquecimento e vida compulsiva, intensa, vibrante. Não é um personagem fácil ou empático, mas é literatura no mais alto grau. A coisa começa pela epígrafe, uma frase da peça A Tempestade, de Shakespeare: “A cada três pensamentos, um será dedicado ao meu túmulo”. E daí em diante é ladeira abaixo, acelerado.
Sabbath vai começar a pensar em suicídio como saída, se não honrosa, pelo menos justificável. O discurso racional para falar do processo de loucura de um ser humano que não se guia pelos valores vigentes. “A lei da vida: flutuação. Para cada ideia, uma contraideia, para cada vontade, uma contravontade. Não admira que ou a gente fica louco e morre, ou resolve desaparecer.” É importante não confundir literatura e vida real. Deixe o desaparecimento, a loucura, deixe inclusive a morte para a literatura e cuide da vida. Todas as emoções são forjadas, um embuste, até Sabbath não saber mais definir a linha que separa as encenações daquilo que realmente sente.
Sim, é isto mesmo, quando se pensa bem: morreu o maior escritor norte-americano.
Paulo Paniago é mestre em literatura e doutor em comunicação. Atua como professor de comunicação social na Universidade de Brasília