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A terceira onda: extrema direita, imigração, terrorismo e narcotráfico (por José Dirceu)

Não é privilégio da América Latina o avanço da extrema direita. Ele se dá globalmente e caminha a passos largos na Europa

Autor José Dirceu

atualizado

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Handout/Getty Images
Nayib Bukele toma posse em El Salvador extrema direita
1 de 1 Nayib Bukele toma posse em El Salvador extrema direita - Foto: Handout/Getty Images

É preciso dar respostas ao desafio da extrema direita e ao risco de governos ditatoriais como o que vivemos no Brasil com Bolsonaro. Nesse enfrentamento, não se pode desconhecer a importância da luta político-cultural, não se pode ceder nos temas que envolvem direitos humanos e democracia e é preciso enfrentar, com coragem, a gravíssima questão do crime organizado.

Os movimentos de cerceamento das liberdades democráticas e de confrontação dos princípios que garantem a democracia historicamente acontecem na América Latina em ondas. A primeira onda foi a dos golpes militares que, entre as décadas de 1950 e 1980, atingiu Paraguai, Guatemala, Brasil, Bolívia, Argentina, Peru, Chile e Uruguai.

A segunda onda foi marcada pelos golpes apoiados em falsos argumentos jurídicos. Ela começa com a destituição de Manuel Zelaya da presidência de Honduras, em 2009: embora eleito pelo Partido Liberal, ele ousou desafiar as oligarquias, melhorou o salário mínimo, aderiu ao Petrocaribe saindo da tutela das petroleiras estadunidenses, e se opôs a uma nova lei mineira que lesava os interesses do país.

Em 2012 é a vez de Fernando Lugo ser apeado da presidência do Paraguai; quatro anos acontece o impeachment da presidente Dilma Rousseff e todo o processo da Lava Jato que levou à prisão de Lula e o tirou da disputa presidencial de 2018. Em 2020, Rafael Correa, ex-presidente do Equador, é condenado a oito anos de prisão e impedido de disputar a vice-presidência, num processo que ele acusa de “law fare”.

Agora, estamos vivendo a terceira onda, caracterizada pelo avanço da extrema direita, tendo na sua esteira questões complexas como as da imigração, do narcotráfico e da crise da segurança pública.

O mais acabado exemplo dessa terceira onda é Nayib Bukele (foto em destaque), que em 2 de junho tomou posse para exercer seu segundo mandato como presidente de El Salvador. Bukele, 42 anos, filho de um empresário de origem palestina, marcou seu primeiro mandato pela repressão violenta às gangues, uma das consequências da guerra civil que tomou conta do país na década de 1980 e que levou muitos salvadorenhos a buscar refúgio nos Estados Unidos.

As gangues MS-13 e Barrio 18 teriam sido formadas em Los Angeles. Com o fim da guerra civil, os emigrados voltaram ao país contribuindo para o aumento da criminalidade.

Um dos principais projetos de Bukele no primeiro mandato foi a construção de um presídio com capacidade para 4 mil presos, inaugurado em janeiro de 2023, o maior da América Latina.

O Centro de Confinamento de Terrorismo (Cecot) ocupa 166 hectares, mantém instalações de alta segurança onde não entra a luz do sol, só artificial, e os presos têm que comer com as mãos porque garfos e facas poderiam se transformar em armas. Chamado de “buraco negro” por grupos de defensores dos direitos humanos, há denúncias de que 174 reclusos foram torturados e mortos de forma violenta.

Mas a mão-de-ferro de Bukele, que usa jaqueta de couro e boné com a aba virada para a parte de trás da cabeça, deu bom retorno eleitoral. Ele foi reeleito com 85% dos votos, graças à redução da criminalidade. Em 2023, foi 2,4 por 100 mil contra 106,3 por 100 mil em 2015.

Ele vem governando, desde o mandato anterior, em regime de exceção, vigente desde março de 2022. Há um grande contingente de detidos, sem ordem judicial, acusados de pertencerem a gangues. E apesar da Constituição do país proibir a reeleição, ele conseguiu se candidatar graças aos votos dos juízes que designou para a Corte.

Empresas de pesquisas que acompanham de perto a popularidade de Bukele, avaliam que a política “linha-dura” de segurança pública e a “máquina” de propaganda na internet estão por trás desse fenômeno, tanto nacionalmente quanto no exterior. Ele é o político com maior número de seguidores no TikTok.

No entanto, nem tudo são flores no caminho do candidato a ditador de El Salvador. O país enfrenta uma dívida pública de US$ 30 bilhões, o equivalente a 84% do PIB; 29% dos seus 6,5 milhões de habitantes são pobres e muitos continuam emigrando para os Estados Unidos em busca de trabalho.

O estilo Bukele já começa a atrair seguidores. Na esteira de uma rebelião em presídios superlotados e degradados a qual se somou o terror imposto à população pelas milícias e gangues, o Equador elegeu no ano passado, um jovem empresário de 36 anos, Daniel Noboa, que nasceu e estudou nos Estados Unidos.

Daniel é filho de um dos maiores empresários do país, Álvaro Noboa, que por cinco vezes disputou a presidência da República sem conseguir se eleger. Seu discurso de campanha, com ênfase na segurança pública e combate ao crime guarda grande semelhança com o de Bukele.

Temo que Bukele venha a inspirar mais lideranças na América Latina. A saída pela linha dura, típica dos regimes autoritários de direita, tem forte apelo junto à população. É preciso construir um programa eficiente de segurança pública com dois eixos, nem sempre fáceis de serem equilibrados: combate sem trégua à criminalidade e respeito aos direitos humanos.

Mas se a esquerda não enfrentar esta questão de frente, está fadada à perda de popularidade e ao fracasso eleitoral. Esta é uma questão líquida e certa, pois é reivindicação central da população em todas as regiões do Brasil e em muitos países da América Latina e, muito especialmente, nas periferias das grandes cidades.

O avanço da extrema direita

Não é privilégio da América Latina o avanço da extrema direita. Ele se dá globalmente e caminha a passos largos na Europa.

O primeiro dirigente europeu a revelar seu ideário próximo ao nazifascismo foi Viktor Orbán, premier da Hungria. Embora seu partido, o Fidesz, tenha chegado ao Parlamento, em 1990, com uma plataforma liberal, Orbán foi, ao longo dos anos, revelando sua verdadeira face. Ele ocupou o cargo de primeiro-ministro de 1998 a 2002. Voltou em 2010 para não mais abandonar a cadeira.

Sua política externa sempre foi marcada pela retórica anti-imigrante: em 2015, a Hungria construiu uma cerca na sua fronteira sul após a crise migratória e impôs algumas das regras de asilo mais rigorosas da Europa.

Robert Fico, que voltou ao comando da Eslováquia em 2023 – em 2018, deixou o cargo de primeiro-ministro depois de tê-lo ocupado por mais de uma década – vem sendo comparado à Orban pelos seus opositores – ele deu uma guinada na política externa do país, que deixou de apoiar a Ucrânia para se aliar à Rússia.

Georgia Meloni, de extrema direita, é presidente da Itália desde 2022; também naquele ano os ultradireitistas pela primeira vez tiveram influência importante no governo da Suécia; em 2023, o Partido da Liberdade, de extrema direita, venceu as eleições legislativas na Holanda.

Nas eleições legislativas deste ano, a centro-direita venceu as eleições na Finlândia (20,8%), derrotando os social-democratas (19,9%), partido da primeira-ministra Sanna Marin, avaliada como a mais popular da história recente do país. A extrema direita também avançou, registrando 20,1% dos votos.

A extrema direita cresceu na Bélgica, na Espanha, em Portugal e em várias outras partes, ancorada no temor à imigração, na inflação e na perda de direitos.

As recentes eleições para o Parlamento Europeu espelham esta realidade. Houve um avanço significativo de partidos ultraconservadores, populistas, xenófobos e de extrema direita, principalmente na Alemanha, Holanda, Áustria, Itália e França. A vitória foi das forças de centro-direita, mas foi o avanço da extrema direita que marcou o pleito.

O impacto foi tão grande que o presidente da França, Emmanuel Macron, decidiu anunciar a dissolução da Assembleia Nacional e convocar eleições legislativas. Seu partido teve apenas 15,2% dos votos contra 32,4% da extrema direita e 14,3% dos socialistas.

Na Bélgica, o primeiro-ministro liberal, Alexander de Croo, anunciou sua renúncia depois da divulgação dos resultados, pois seu partido teve um pífio desempenho. A extrema direita conquistou três cadeiras, assim como o partido nacionalista flamengo. No conjunto, centro-esquerda e centro-direita ficaram com quatro cadeiras cada uma.

Os resultados são um indicador claro do que deve ocorrer daqui pra frente na nossa região, se os partidos progressistas não conseguirem dar respostas, além das questões relativas à distribuição de renda, àquelas que tratam da segurança pública – contexto no qual se inclui narcotráfico, milícias e terrorismo – e da imigração.

Exemplo de como essas questões afetam diretamente a população e de como o cidadão reage a elas é o caso do Chile. Depois de eleger, em 2021, um presidente de esquerda, Rafael Boric, o Chile deu maioria ao conservador Partido da República, do candidato derrotado à Presidência José Antonio Kast, na eleição para o Conselho Constituinte do Chile realizada em maio de 2023.

O grupo de esquerda Unidad para Chile, liderado pelo atual presidente chileno, ficou com 28% dos votos. Os demais votos foram para partidos de centro.

O avanço significativo da direita nas eleições para o Conselho Constituinte em tão pouco tempo é simples de entender, de acordo com analistas da política chilena: o Norte do Chile votou contra a imigração de venezuelanos; o centro, contra a insegurança e o aumento da criminalidade; e o Sul, contra os mapuches que lutam, inclusive pela força, pela reconquista de suas terras ancestrais.

Como vencer a terceira onda

Nossos governos e nossos partidos podem e devem dar respostas ao desafio da extrema direita e ao risco de governos ditatoriais como o que vivemos no Brasil com Bolsonaro.

Nesse enfrentamento, não se pode desconhecer a importância da luta político-cultural, não se pode ceder nos temas que envolvem direitos humanos e democracia e é preciso enfrentar, com coragem, a gravíssima questão do crime organizado.

No Brasil, as milícias já dominam regiões do Rio de Janeiro. O narcotráfico se faz presente em todas as grandes cidades do país. A guerra entre grupos e facções assombra as periferias e comunidades e deixa um grande número de mortos, muitos deles jovens.

Essa é a realidade para a qual temos que oferecer propostas efetivas, não as falsas soluções da extrema direita como encarceramento em massa, execuções indiscriminadas pelas polícias como vingança, criminalização dos movimentos sociais e exploração da imigração de venezuelanos ou não.

Ao lado da segurança pública, outros dois desafios se impõem aos nossos partidos e governos: como combater as fake news que dominam as redes e são disseminadas diariamente pela extrema direita e seus militantes e robôs e como reagir ao discurso conservador, liderado muito especialmente pelas igrejas evangélicas, no que se refere à pauta de costumes.

Na verdade, as duas questões se misturam, pois a pauta conservadora em grande parte é construída sobre informações falsas e mentirosas.

Outro ponto é como nos devemos comportar frente ao Parlamento. Devemos recuar ou ceder às chantagens e pressões de deputados e senadores sob o pretexto da governabilidade? Ou os recuos acabarão por pavimentar as condições para nossa derrota eleitoral ou para a paralisia de nossos governos?

A resposta é o enfrentamento dessas agendas pelo debate público e pela mobilização popular e social. Só assim, sem medo e com a certeza que temos apoio na sociedade para disputar posições contra a extrema direita e o conservadorismo, vamos conquistar vitórias da mesma forma que fomos à luta para libertar Lula, o que de início parecia impossível, e vencer Bolsonaro em 2022 com a articulação de uma ampla frente político-eleitoral.

É preciso deixar de subestimar a questão da segurança pública e fazer as reformas necessárias no sistema penitenciário e na política de segurança pública que tem que ser vista como prioridade. Também a política de comunicação e a de mobilização devem ser consideradas essenciais, inclusive para nossa agenda de mudanças econômicas e sociais.

Sem condições políticas não avançaremos na agenda econômica que também depende da mobilização e do convencimento das maiorias sobre nossa pauta e agenda de reformas para o país.

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