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A pandemia da Covid-19 tem rosto de mulher

Neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, é imperativo reforçar o alerta de que a pandemia afeta as mulheres de forma desproporcional

Adele Benzaken é médica sanitarista, foi diretora do departamento de HIV/Aids, IST e Hepatites Virais do Ministério da Saúde e atualmente é diretora médica do programa global da AHF

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1 de 1 mulheres, dia internacional da mu - Foto: iStock/Ilustração

Vai fazer um ano no dia 17 de março que a empregada doméstica Cleonice Gonçalves morreu. Aos 63 anos, negra, hipertensa e diabética, morava no interior do estado do Rio de Janeiro. Toda semana, percorria 120 km até um apartamento no Leblon, bairro nobre da zona sul carioca. Foi lá que ela se infectou, após a patroa voltar da Itália. Teve os primeiros sintomas em um dia e faleceu no outro.

Cleonice foi uma das primeiras vítimas da Covid-19 no Brasil. A história dela é um triste e fiel retrato da pandemia no país. Embora seja essencialmente uma questão de saúde pública, a crise sanitária global do novo coronavírus representa uma catástrofe econômica e humanitária sem precedentes, com efeitos devastadores em países como o nosso.

Neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, é imperativo reforçar o alerta de que a pandemia afeta as mulheres – sobretudo pobres, negras e indígenas – de forma desproporcional e impõe retrocessos na busca por justiça social e igualdade de gênero. Mais que isso, a pandemia ameaça reverter ganhos econômicos obtidos pelas mulheres, ampliando disparidades de gênero que persistem, apesar de alguns avanços recentes.

Um dos exemplos mais claros desse efeito é a redução proporcional da participação feminina no mercado de trabalho: no 3º trimestre de 2020, a taxa foi de 45,8%, mesmo patamar de 30 anos atrás, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Maioria na economia

As mulheres são maioria nos setores econômicos mais afetados pela pandemia, incluindo as trabalhadoras da saúde, os empregos menos qualificados, a atividade informal e funções com menor possibilidade de trabalho remoto. Somente entre setembro e novembro de 2020, por exemplo, o Brasil perdeu 1,5 milhão de postos de trabalho doméstico, segundo a Pnad/IBGE.

Outro ponto é que, com a pandemia, 56% das mulheres gastam mais tempo em tarefas domésticas: são 5,2 horas a mais por semana cuidando dos filhos, estima a ONU Mulheres. Elas arcam, ainda, com a sobrecarga pelos cuidados com crianças e idosos devido ao fechamento de escolas e asilos.

A desigualdade de tempo livre reflete-se na maior dificuldade que as mulheres têm para sair da pobreza e ascender socialmente. O abismo fica mais evidente quando se percebe que 45% dos domicílios brasileiros são comandados por mulheres, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

Discutir a miséria

Esse contexto leva à inevitável discussão sobre a miséria. A Fundação Getúlio Vargas calcula que cerca de 28 milhões de pessoas passaram a integrar as faixas da pobreza e da pobreza extrema no início de 2021.

Enquanto o governo federal não restabelece o auxílio emergencial, a ONG Ação da Cidadania estima que 10,3 milhões têm fome no Brasil de hoje – o equivalente à população de Portugal. Não é difícil imaginar que mulheres sejam grande parte desse contingente de pessoas desamparadas.

No caso de mulheres trans, as restrições de ingresso no mercado de trabalho por conta de estigma e preconceito, que já são altas, se agravaram durante a pandemia. Com isso, elas ficam mais expostas à perda de renda fruto de trabalhos majoritariamente informais, incluindo a prostituição – uma ameaça também às mulheres cisgênero.

O isolamento social na pandemia fez crescer em todo o mundo as violências contra mulheres. No Brasil, homicídios dolosos, feminicídios e violência doméstica aumentaram em 2020. Por outro lado, crimes como lesão corporal dolosa, ameaça e estupro caíram no período, possível evidência das dificuldades para as mulheres denunciarem seus agressores. As informações são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Sem serviços básicos

Na área da saúde, a pandemia tem dificultado o acesso de mulheres e meninas aos serviços básicos. No Brasil, observa-se um afrouxamento das políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva, comprometendo o acesso de mulheres a consultas, contraceptivos, vacinas, testagem e tratamento. E, ainda, a negligência do governo federal em relação à política de HIV/aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis.

Com a redução da testagem de gestantes no pré-natal, por exemplo, não será possível alegar surpresa se, em breve, crescer o número de mulheres com HIV, hepatites, sífilis, tuberculose e câncer cervical; os casos de transmissão vertical do HIV; ou o número de bebês com sífilis congênita.

Além disso, o Imperial College de Londres estima um aumento de 10% nas mortes relacionadas à aids em todo o mundo nos próximos cinco anos. E o Programa Conjunto das Nações Unidos sobre HIV/Aids (Unaids) projeta um adicional de 230 mil novos casos de HIV e de 140 mil óbitos relacionados à aids, dependendo de quanto tempo durar a pandemia de Covid-19.

É urgente, portanto, que o governo cumpra seu papel constitucional de zelar pela saúde de todos e todas. Alguns caminhos: garantir vacinas para toda população, ampliar a assistência para pacientes graves, valorizar trabalhadores da saúde e não sabotar as medidas de prevenção da Covid-19; investir em telemedicina e protocolos seguros de atenção à saúde, com base na ciência.

Além disso, é necessário assegurar a manutenção dos serviços de testagem e tratamento para o HIV, IST e hepatites virais; tratar as políticas de saúde sexual, reprodutiva e materno-infantil como essenciais, respeitando as particularidades sociodemográficas e vulnerabilidades de gênero, sobretudo em relação às mulheres e meninas.

Todas essas medidas, evidentes à luz do bom senso e da empatia com o ser humano, seriam um grande passo para entender os efeitos das diversas emergências de saúde que assombram o mundo desde o fim de 2019 e promover intervenções eficazes e equânimes para toda população brasileira – especialmente as mulheres.

  • Adele Benzaken é médica sanitarista, foi diretora do departamento de HIV/Aids, IST e Hepatites Virais do Ministério da Saúde e atualmente é diretora médica do programa global da AHF

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