A cultura brasiliense sobrevive bem longe dos milhões da Lei Rouanet
Toda vez que são divulgadas as cifras envolvidas em esquemas de corrupção, constatamos: os corruptos profissionais vivem em um reino muito muito distante do que é habitado pelos pobres mortais. E essa distância não é medida em quilômetros ou anos-luz, mas pelo incrível número de dígitos nas contas desses saqueadores do bem público. Esta semana […]
Rosualdo Rodrigues
atualizado
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Toda vez que são divulgadas as cifras envolvidas em esquemas de corrupção, constatamos: os corruptos profissionais vivem em um reino muito muito distante do que é habitado pelos pobres mortais. E essa distância não é medida em quilômetros ou anos-luz, mas pelo incrível número de dígitos nas contas desses saqueadores do bem público.
Esta semana mesmo, ficamos sabendo que, ao longo de 20 anos, o grupo Bellini Cultural, de São Paulo, conseguiu arrecadar de forma indevida, via Lei Rouanet, uma soma que chega a R$ 180 milhões — quantia que não habita sequer os sonhos de um homem comum de tirar sozinho na mega-sena.
Pelo que se sabe, há um calhamaço de formulários a serem preenchidos por quem se habilita a ter o aval da Lei Rouanet em um projeto cultural. Em cada um deles o proponente deverá fornecer informações meticulosas, dignas de um interrogatório policial.
Vencida essa etapa e realizado o projeto, a prestação de contas será uma tarefa ainda mais árdua para o candidato, obrigado a apresentar comprovantes de cada milímetro percorrido até a conclusão e apresentação do evento ou produto. Por isso é difícil compreender como um grupo consegue a proeza de ludibriar esse cerco por tanto tempo.
O Ministério da Cultura diz que em 2013 entregou à Controladoria Geral da União uma Nota Técnica apontando “indícios de falsificações” em documentos relacionados a verbas liberadas por meio da Lei Rouanet e a PF foi acionada a partir daí. A Polícia diz que em 2011 o ministério ignorou denúncia sobre desvios em contratos relacionados à Rouanet…
Enquanto a batata quente é jogada de mão em mão, a cultura do país continua viva bem longe dos milhões movimentados pela lei — que sempre se mostrou mais vantajosa para os tubarões da produção cultural. Ela sobrevive pelas mãos de gente que trabalha mais por amor à causa e por sobrevivência do que pela ambição de ficar rico fazendo arte. Gente que faz muito com muito pouco.
Em Brasília mesmo, um panorama vivo e pulsante se desenha à margem das leis de incentivo — inclusive locais. Dele fazem parte nomes como o maestro Alexandre Innecco e a jornalista Conceição Freitas, que transformaram, respectivamente, uma sala comercial na 115 Norte e uma banca de revistas na 308 Sul em dois dos pontos culturais mais fervilhantes da capital.
Estão também o diretor de teatro Alexandre Ribondi, em permanente atividade de formação de novos atores e montagem de espetáculos, e o fotógrafo Ivaldo Cavalcante, que agrega criadores em seu bar-galeria Olho de Águia, na CNF, em Taguatinga.
Tem ainda o pessoal do Mercado Sul (foto no alto), também em Taguatinga — uma comunidade que respira arte e dela sobrevive — e os donos das pequenas galerias, como Alfinete e Elefante, ambas na Asa Norte…
A lista, por incrível que pareça, é extensa. Mas os exemplos citados são apenas para mostrar que o dinheiro que essas pessoas tiram do próprio bolso para produzir é trocado para quem fatura milhões com a Lei Rouanet — legal ou ilegalmente. Mas faz à coletividade um bem que não tem preço.