Visitando Bruna Neiva: apartamentos vazios e singelos tesouros
A artista está na exposição coletiva “À Vista – Paisagem em Contorno”, em cartaz até este domingo (4/6)
atualizado
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Bruna Neiva pensa a fotografia como uma janela. Um ponto a partir do qual se debruçar para espiar. Perseguindo justamente esse além, que conseguia entrever a cada imagem, ela virou do avesso sua vida profissional.
Formada em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB), abandonou as redações e deixou de lado o fotojornalismo para emprestar um novo sentido ao seu fazer diário. O mestrado em Poéticas Contemporâneas no Departamento de Artes Visuais da UnB, no começo desta década, ajudou a escancarar a visão que já intuía.
“O fotojornalismo tem a premissa de fotografar a realidade, mas o profissional que pensa criticamente aquilo que faz sabe que não se trata da realidade integral, apenas daquela registrada a partir de um ponto de vista”, elabora Bruna, para fazer seu contraponto. “No meu trabalho, parto de um desinteresse profundo pelo o que estou vendo. Uso a fotografia para criar uma cena. Como uma janela aberta para outro lugar. Que não é aquele lugar em que estou.”
Bruna Neiva, assim, vem desenvolvendo a fotografia como suporte para a performance. Ou melhor, vem desenvolvendo um tipo de performance que serve à fotografia. Ou melhor ainda, recorrendo a um termo cunhado pela artista carioca Brígida Baltar, trata-se da chamada “foto-ação”.
Uma performance que não é pensada para espaços públicos, nem para ser feita diante de audiências. Uma ação intimista que, aliada à fotografia, mais sugere que explicita. E a fotografia, então, não funciona como mero registro de uma obra apresentada num dado tempo, num dado lugar. Ela é a própria obra.
Em suas primeiras séries de imagens, Bruna Neiva buscava lugares ermos, como quem busca o cenário ideal para uma coreografia já pensada, uma metáfora visual. Colocando a máquina fotográfica sobre o tripé, abrindo o diafragma e programando uma longa exposição para cada frame, Bruna ganhava tempo para entrar na cena, mesmo que de sua presença só ficassem rastros na imagem, sob uma luz imprecisa e fugidia que ela define como “onírica”.
Que era justamente a intenção: um lugar fora do lugar, um tempo fora do tempo.
O que nos leva à sua mais recente série, “Visita a Ninguém”, ainda aberta, que Bruna Neiva vem desenvolvendo ao longo dos últimos dois anos. Ela teve a ideia quando estava visitando apartamentos desocupados, procurando um lugar para morar.
“Um apartamento nessa situação é estranhíssimo. Porque é a casa de ninguém, um lugar nenhum. Alguém morou ali antes, você não sabe quem, nem quando. Você até pode encontrar marcas de uso nos móveis, vestígios de pessoas que estiveram ali antes, mas não sabe quem são.”
Hoje Bruna mora num confortável apartamento de dois quartos da 416 Norte. Mas continua visitando apartamentos por aí. Para essas visitas não serem aleatórias demais e seu trabalho não se perder em vão, bolou para si mesma algumas regrinhas.
A ação tem que se dar em um par de horas. É o prazo que ela acerta com a imobiliária para pegar e devolver a chave. Só interessam imóveis para alugar em um círculo que ela mesmo traçou no mapa do Plano Piloto, pegando boa parte da Asa Sul, um tanto do Cruzeiro. Não vale interagir com vizinhos ou porteiros. E ela sempre vai sozinha. Sempre usando as mesmas roupas.
Na sua mochila, além da máquina e do tripé, Bruna sempre leva um pano de pó e produtos de limpeza. Para que ela possa se ocupar com uma pequena ação desimportante. Como lavar as janelas. Arrumar uma gaveta. Varrer o corredor.
Algumas das fotografias que compõem “Visita a Ninguém” podem ser vistas até domingo (4/6) na Funarte Brasília. Dentro da mostra coletiva “À Vista – Paisagem em Contorno”, que reúne Cecília Bona, Raquel Nava, Luciana Paiva e uma série de artistas brasilienses, todas a tatear os limites do que seria a paisagem na arte contemporânea.
A paisagem, para Bruna Neiva, aqui parece não ser composta apenas pelos assoalhos de tábua corrida, pelas paredes brancas e pelos cômodos vazios ocupados por ninguém. A paisagem parece ser o próprio tempo.
Em cada visita, Bruna leva fotografias feitas no apartamento anterior. Alguns poemas. Aquele mapa do Plano Piloto. São os singelos tesouros que ela deixa ali para ninguém. Esconde no fundo de uma gaveta, dentro do armário embutido, debaixo de uma tábua solta, atrás de um azulejo bambo.
“Esses meus tesourinhos podem ser encontrados só daqui uns dez anos, porque alguns deles eu me empenhei em esconder”, calcula Bruna Neiva. “Será que quem encontrar vai se importar? Vai querer ir atrás daquelas pistas? O que restará de tudo isso em dez anos? O que resta disso hoje mesmo? Esses apartamentos que eu visitei no ano passado agora já têm outras histórias. Agora outras pessoas moram lá. São outros lugares.”