Visita a Elder Rocha: a arte, seus sentidos e seu trabalho diário
Obras do artistas estão espalhadas em três espaços expositivos de Brasília e evidenciam força criativa do realizador
atualizado
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Elder Rocha, neste exato momento, pode ser encontrado em três endereços distintos da cidade. A saber…
Dentro do Museu Nacional Honestino Guimarães, desenhos e pinturas de Elder ocupam duas compridas paredes na larga mostra coletiva “Contraponto”, montada pela curadora Tereza de Arruda a partir da coleção de Sérgio Carvalho. Seus trabalhos ali convivem com a arte multimídia de João Angelini e, mais adiante, com outros ex-alunos, como Camila Soato e Fabio Baroli.
Dentro da Hill House, uma loja voltada a móveis e design no shopping Casa Park, pinturas de Elder recebem visitantes e clientes logo na entrada. Mais para dentro da loja, o amigo Nelson Maravalhas também pode ser visitado – além de Bárbara Mangueira e, mais uma vez, Camila Soato.
E, por fim, hoje é o último dia – este sábado (16/12) – de funcionamento da Alfinete Galeria nesta temporada 2017. Fechando o calendário, uma mostra de acervo do galerista Dalton Camargos dedica uma parede inteira a desenhos de Elder, inclusive três trabalhos inéditos.
Não que seja surpreendente para quem percorre o cenário das artes brasilienses, mas não deixa de ser curioso notar como, mesmo em três ambientes tão distintos, as peças de Elder Rocha são plenamente identificáveis e vencem as distâncias geográficas e os determinismos de expografia.
No sentido de que todas elas – umas aqui, outras ali, as demais acolá – parecem se somar e completar – como partes distintas do mesmo pensamento, da mesma intenção.
Para tentar entender um bocadinho mais desse pensamento e dessa intenção, a coluna Plástica esta semana foi bater num outro endereço onde também é bem provável encontrarmos Elder Rocha. O apartamento dele próprio, num dos blocos que formam a chamada Colina, lar de professores dentro do Campus Universitário Darcy Ribeiro.
Também participou do encontro o escritor e curador Renato Lins, graduado em filosofia na Universidade de Brasília (UnB) e responsável pela retrospectiva de Ralph Gehre no Museu dos Correios, no ano passado. Renato, no momento, está a estudar justamente o pensamento e as intenções de Elder Rocha.
“Bem, a arte é um negócio enorme, não? Cada um se interessa por um aspecto”, introduz Elder Rocha, abrindo aquela chuvosa manhã de quarta-feira com uma rodada de café quentinho. “O aspecto que, para mim, seria o mais mágico é a polissemia. Desde o início de meus trabalhos, mesmo que inconscientemente, eu vinha tentando ampliar esse campo. Queria que cada obra tivesse o maior número possível de significados.”
Elder logo se deu conta que, para isso, ele teria que limpar cada composição. Tirar elementos, diminuir informações, abrir espaços para que sejam preenchidos subjetivamente pelo observador. E cada um de nós, então, traz para aquele trabalho o que carrega na memória, na sua vivência pessoal, e que ali será projetado.
Como a Elder Rocha não interessa praticar um abstracionismo puro e simples, algo que considera historicamente esgotado, o que ele vem fazendo para conseguir abrir esses espaços é interromper as imagens antes que se completem, formando composições híbridas entre o figurativismo e o abstracionismo.
“Em vez de produzir uma imagem que seja emissora de sentido, quero produzir uma imagem absorvente de sentidos”, estabelece Elder. “Quando dou uma imagem fragmentária e que não completa o desejo do espectador de ter uma leitura, de poder ler uma historinha, cabe a ele fazer uma construção.”
E aqui pergunta Elder, de forma muito mais do que retórica: será possível uma pessoa construir conteúdos de natureza emocional que ela nem mesmo tem consciência de que carrega?
Essa questão, para o próprio Elder Rocha, foi ficando mais e mais evidente à medida em que ia produzindo imagens. Ao afinar seu entendimento sobre o campo de trabalho que lhe interessa, ele pôde retirar o que estava excessivo em suas composições. Pois o que pode ser dito, afinal, sempre pode ser dito de forma mais simples.
“É claro que a simplicidade é penosa e complexa”, admite Elder. “Eu só consegui tirar elementos de minhas composições porque já sabia aonde queria chegar. Então pude ser mais simples. Eu sempre fui racional na construção de imagens. Ao mesmo tempo, totalmente intuitivo e absolutamente racional.”
Como a construção de uma pintura leva tempo e exige definições técnicas, e por isso racionais, Elder se viu obrigado a criar uma metodologia pessoal. Ele não gosta de fazer esboços ou pensar adiantamente como um trabalho ficará no final. Fazer isso, ele teme, seria uma forma de não permitir que os sentidos se expandissem.
Então, o que ele faz é seguir uma mesma ordem de execução em cada trabalha.
Nessa metodologia particular, Elder Rocha primeiro trabalha o fundo da composição. Se tem uma certa cor que lhe interessa naquela ocasião, por exemplo, ele parte dessa cor. Dali a pouco, ele espera um pouco, até um momento seguinte em que ele já sabe qual será o segundo gesto. E mais tarde, um terceiro.
Em geral, os trabalhos são fechados assim. “Três gestos, três camadas”, define Elder. “Até que tem uma hora que fecha. E isso tem a ver com o impalpável. Eu sei que fecha porque fica excitante para mim, sabe? Uma adrenalina? Não pode ter mais nada. Se passou dali fica estranho.”
O que não quer dizer, Elder se apressa em explicar, que ele não possa se estranhar com seu próprio trabalho. Como, através desse método que desenvolveu, ele espera entrar em contato com algo sobre o qual não tem consciência, então é comum e até natural que aconteça um estranhamento.
“E espero que esse estranhamento faça parte da experiência do espectador também. Porque será isso que vai fazer você olhar uma segunda vez.”
Essa ideia de trabalhar em três gestos, três camadas acabou levando Elder Rocha a ter hoje um corpo de obra composto fortemente por séries de pinturas e de desenhos. A possibilidade de dispor de semelhantes elementos ao longo de diferentes peças, dentro de séries definidas, faz com que ele possa ser mais econômico – e simples – em cada peça.
Algo que não foi totalmente explorado numa peça, pode na sequência ser melhor explorado. Elder vai desencadeando uma repetição de cores e de elementos, num desdobrar gestos. E, na mesma medida, ele vai deixando claro para seu espectador que o que poderia, num entendimento mais ligeiro e mais singelo, parecer acaso ou inspiração na verdade é trabalho árduo, trabalho diário.
Quando uma mesma mancha de cor se repete em várias obras, fica claro o quanto há de construção naquele trabalho. Ou quando uma mesma forma geométrica se repete. Quando se repetem os passarinhos da série “Paisagens Instáveis”. As aves podem ser encontradas nos três desenhos que estão em cartaz no Museu Nacional e também em duas das pinturas da Hill House.
“Para mim, aquele passarinho é como se fosse uma mancha de tinta rosa. Não penso nele como um personagem mais importante do que uma mancha de cor. Mas claro que há um contexto anterior, uma ideia que a figura desperta, uma literalidade de entendimento. Já me disseram, por causa desses passarinhos, que essa série de trabalhos é sobre ecologia. Tudo bem então. Eu acho que é sobre pintura…”
Elder Rocha acredita que o simples fato de falar sobre o trabalho de produzir imagens já é algo limitado e limitante. A linguagem verbal sendo pouco maleável para dar conta do que realmente se passa num terreno estrangeiro às palavras.
No entanto, assim como ele se empenhou em limpar seus gestos como pintor para poder se sentir realizado na carreira artística, Elder vem se empenhando em aperfeiçoar sua comunicação verbal, afinal ele dá aulas de pintura no Instituto de Artes da UnB.
“O fato de dar aula me obriga a ter clareza. Que eu tenho que botar a cabeça em ordem para poder explicar conceitos que são de uma natureza muito vaga. Isso me organiza o pensamento. No começo, quando entrei na universidade, vinte e tantos anos atrás, me incomodava demais: não conseguia balancear esses dois universos, sabe? O universo da imagem pura com o universo da fala. Tudo isso era um pouco complexo. Mas com o tempo, isso vai ser organizando.”
Elder Rocha, não por acaso, está sentado na sala de seu apartamento, ocupando uma poltrona bem ao lado de uma de suas criações preferidas. “Turbulência da Memória”, uma pintura de 2003, marcou aquilo que hoje ele enxerga como ponto de virada de sua carreira.
Foi quando começou a dar conta verbalmente de explicar essa busca que o move.
Estava Elder, então naquele 2003, a tropeçar justamente nesse meio caminho entre o universo da imagem pura e o universo da fala. Na época, ele tinha um amigo que fazia cursinho de inglês e treinava o idioma lendo, tentando ler a revista britânica “The Face”, dedicada a música, moda e cultura pop.
“Ele lia e me contava o que tinha entendido, e eu corrigia. Era incrível porque todos os lapsos, todos os buracos de entendimento, ele preenchia naturalmente com outras coisas, sem nem perceber. Então eu notei que aquele preenchimento tinha mais a ver com ele do que com o texto da matéria em si. Tinha uma enorme quantidade de sexo em textos sobre música, por exemplo. Rolava tudo ali dentro, para ele, mas não tinha nada disso na verdade. Então percebi que poderia criar imagens que tivessem esse tipo de lapso e que funcionassem para o espectador da mesma forma que esse texto para meu amigo, um texto que obliterado por incompetência linguística… Será que é possível?”
Toda pesquisa de arte, comenta agora o professor Elder Rocha, começa com uma pergunta. E o trabalho, para o artista Elder Rocha, não se trata de dar uma resposta. O trabalho se trata de perguntar, perguntar, perguntar.