Viagem às fronteiras entre arte, ciência e tecnologia
A mostra coletiva A-Riscado segue em cartaz na sala principal do Museu Nacional Honestino Guimarães até 11 de janeiro
atualizado
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Neste momento tão peculiar da história do país, em que um ostensivo discurso anti-intelectual e contrário às artes se estabelece no centro do poder, talvez seja importante – sem doutrinação ou partidarismo – lembrar mais uma vez dos contatos e dos atravessamentos entre arte, ciência, tecnologia.
Eis a proposta da mostra coletiva A-Riscado, que segue em cartaz na sala principal do Museu Nacional Honestino Guimarães até 11 de janeiro. Uma mostra “arriscada”, no entender dos próprios realizadores, justamente por palmilhar essa confluência no tempo presente, no calor do instante em que artistas e pesquisadores envolvidos estão a experimentar seus processos.
Os curadores dessa mostra são dois profissionais de distintas formações, exatamente para melhor enxergar os diferentes aspectos que informam uma exposição com tamanha ambição. Wagner Barja, artista plástico de larga trajetória e diretor do Museu Nacional desde a criação em 2007, aqui se soma a Gilberto Lacerda Santos, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e líder do Laboratório Ábaco.
Grupo de Pesquisas Interdisciplinares sobre Tecnologias e Educação, ligado à UnB, o Ábaco gestou o projeto dessa mostra para ser parte da recente Semana Nacional de Arte e Tecnologia, que aconteceu em outubro.
A mostra reúne 16 artistas brasilienses, muitos deles com trajetória reconhecida nacionalmente, de Cirilo Quartim a Alexandre Rangel, passando também por alunos de graduação da própria UnB, como Tarcísio Paniago e Leona Raio Laser. Todos se valendo de recursos tecnológicos para sua expressão visual. E todos mantendo o aprimoramento dessas técnicas no centro de seu interesse.
Isso dito, vamos aqui tratar de cinco das peças que pontuam a visitação no Museu Nacional para vislumbrar alguns dos mil desdobramentos entre arte, ciência, tecnologia…
Milton Marques é perito em sucatas e obsolescências em geral. Alguns de seus objetos foram criados a partir de antigos motores de impressoras de escritório e leitores laser de aparelhos de CD. Também trabalha com diminutas câmeras de vídeo para focalizar detalhes igualmente pequenos, que passariam despercebidos de tão milimétricos, para ampliá-los numa imagem em larga escala.
Milton construiu dessa feita uma traquitana que fica girando incessantemente, no interior de uma redoma, tratada como se aquele vidro protegesse uma relíquia. E, de certa forma, há uma preciosidade sim. Uma espécie de alquimia acontece ali dentro, na qual o artista se vale de prosaica nota de um dólar, com a efígie de Benjamim Franklin, para promover um efeito hipnótico bem no meio do Museu Nacional.
Miguel Ferreira também explora pequenas engenharias. Em objetos cinéticos, dotados de movimento, ele concilia mecânica e estética. Esse encontro, notam os curadores de A-Riscado, pode acontecer de duas maneiras opostas. Suas maquininhas tanto podem explorar visualmente as engrenagens, com o artista deixando aparente sua constituição, quanto podem omitir o sistema que lhes dá movimento, com seus motores escondidos sob as carapaças, surpreendendo o observador quando elas se põem em ação.
No Museu Nacional, estão presentes cinco obras de Miguel, algumas já apresentadas em sua primeira mostra individual, realizada na Alfinete Galeria em março de 2016. A máquina aqui em destaque funciona com a exatidão de um relógio: as lâminas que formam a cúpula de sua arquitetura se abrem e se fecham lentamente, como as pétalas de uma flor de metal, ora convidativas, ora ameaçadoras. O mecanismo está todo exposto, do lado de fora da máquina, eviscerado num estudo de anatomia, mas ainda permanece algo de indecifrável.
Márcio H. Mota convida o prezado espectador a entrar na sua Câmara Infinita. Um tablado de madeira erguido a mais ou menos um metro do chão. Cabe a ti, então, sentar ali e esgueirar-se no bojo da máquina, deitando dentro daquilo que então se revela um caixotinho rebimbante. Na face de cima do caixote, um vídeo em preto e branco é projetado interminavelmente. Imagem reverberada, refletida e multiplicada pelos espelhos que compõem as faces laterais do caixote. E a face de baixo, na qual tu estás deitado, vibra com os graves de uma música eletrônica, emprestando realidade tátil para a experiência sonora e visual.
Mestre em arte e tecnologia pelo Instituto de Artes da UnB, Márcio vem levando a carreira em torno da luz, trabalhando em projeções mapeadas e na construção de dispositivos imagéticos, como a Câmara Infinita. Essa obra, assim como outra presente no Museu Nacional, o Misturador de Matéria, foi primeiro apresentada numa individual na Alfinete Galeria em agosto de 2017. Atualmente o artista também participa da coletiva Brasília Extemporânea na Casa Niemeyer.
João Angelini trabalha com tecnologias das mais variadas. Mesmo quando se volta para a pintura, seu procedimento é dos menos usuais. Ele já sobrepôs camadas de tinta numa placa de gesso para daí raspar, de fora para dentro, cada camada até reencontrar a cor pretendida. O artista também já usou o próprio corpo como suporte para sua expressão, em trabalhos ligados ao Grupo EmpreZa ou exercícios solo em animação stop motion.
Na mostra A-Riscado, Angelini comparece com três peças. Talvez a mais lúdica deles, Vela, sobrepõe um vídeo a um objeto valendo-se da transparência de um vidro. Quando o observador se coloca de frente para esta caixinha de papelão, ele enxerga no seu interior uma vela a queimar – a chama alta ameaçando a integridade da caixa. Mas a pessoa só enxerga isso quando está de frente para o objeto, ou seja, quando se dispõe voluntária e intuitivamente a ocupar um ponto de vista privilegiado. Um passo pro lado, o engenho se revela.
Miguel Simão é professor de escultura do Departamento de Artes Visuais da UnB. Nessa condição, ele já deu aulas para alguns de seus colegas desta mostra. E sua contribuição para a exibição merece ser visitada detidamente. Trata-se de uma instalação que amplia e ilumina a ideia de arte e tecnologia, devolvendo-a para seu sentido primeiro aquilo que hoje o espectador contemporâneo muitas vezes entende como sinônimo de alta tecnologia, algo que envolva necessariamente computadores e tal.
Simão caminha sobre a linha do tempo, recuando essa fronteira um tanto, chegando ao domínio do fogo pelo homem. A forja do metal é o marco zero para essa recriação histórica. Em pequenas estações, partes de um todo a funcionarem como episódios de uma mesma narrativa, o artista-professor esmiuça as vizinhanças e os procedimentos de tão ancestral tecnologia. Retorna, assim, ao carvão e ao couro, ao fogo e à água.