Uma tarde na Casa Niemeyer: tensões, ruínas e a passagem do tempo
Mantido atualmente pela Universidade de Brasília, o imóvel recebeu uma reforma em meados do ano passado
atualizado
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Criada por Oscar Niemeyer para lhe servir de paradeiro durante a construção da nova capital, a casa de número 7 do conjunto 3 da quadra 26 bem poderia se perder entre tantos outros endereços residenciais do Park Way. E, de fato, isso aconteceu por alguns bons anos.
Mantido atualmente pela Universidade de Brasília, o imóvel recebeu uma reforma em meados do ano passado e, desde agosto, vem sendo reinserido no roteiro cultural brasiliense. Agora se encontra sob a mesma administração da Casa da Cultura da América Latina. Tal como a irmã do Setor Comercial Sul, recebe as intenções do Decanato de Extensão para que funcione como posto avançado da instituição num contato mais direto com a comunidade.
A vocação para as artes parece evidente desde o papel, aqui na Casa Niemeyer. Uma construção projetada pelo arquiteto dentro daquele estilo neocolonial, tão caro aos modernistas. Uma construção térrea, de teto baixo, com amplo avarandado na parte de trás, que se abre para o cerrado ao redor.
Sua sala principal já vem recebendo exposições de arte contemporânea desde a reabertura no ano passado. Neste momento, está a abrigar uma série de esculturas de Claudio Cretti, artista paraense radicado na cidade de São Paulo. A novidade, desta feita, é que outros setores da casa foram desbravados e conquistados como espaços expositivos. Abrigam mostras paralelas dos brasilienses César Becker e Ludmilla Alves, ambas em parecia com a Alfinete Galeria de Dalton Camargos.
As três exposições seguem em cartaz até 12 de agosto. A Casa Niemeyer funciona para visitação das 8h às 18h. Se nesse horário o prezado visitante der de cara com o portão fechado, pode acontecer, não precisa voltar para casa. Basta uma gentil buzinadinha – que o prestativo funcionário aparece lá de dentro para abrir…
Claudio Cretti trabalha com encaixes e tensões. Suas esculturas mais parecem armadilhas, arapucas, armamentos, ferramentas construídas com materiais de origens um tanto prosaicas: madeira, borracha, plástico. Erguidas e deixadas de pé, retesadas, são máquinas prestes a dispararem contra o ar. Sob a curadoria de Ana Avelar, professora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília, Cretti pôde se espalhar por toda a sala principal da Casa Niemeyer com o trabalho chamado Acaso a Coisa a Casa .
Que uma vez ultrapassado o estreito umbral da entrada da Casa Niemeyer, não muito distante das margens da Avenida Epia Sul, e vencidos os degraus para um patamar pouco superior, a intenção do arquiteto se revela de imediato aos pés – banhada pela luz natural que a invade por todos os lados.
Cretti, assim, teve espaço para conjugar cada uma de suas esculturas. Algumas foram por ele deixadas na parede, como elementos ornamentais. Outras erguidas diretamente sobre o piso de madeira. Sempre na busca por diálogo com a arquitetura, com o próprio material do chão e com a ideia de povoar a casa, a ideia de objetos pessoais que compõem e identificam um lar. O conjunto das peças, de tal forma, oferece-se aqui como uma instalação, nota Ana Avelar.
Tomando o estreito corredor à esquerda da entrada da casa, o visitante encontra em sequência três cômodos até chegar – ao fundo do corredor, ao fundo da casa – numa espécie de suíte. Foi exatinho esse trajeto que seguiram Ludmilla Alves e César Becker para aqui trabalharem.
Quando Ludmilla e César cá estiveram pela primeira vez, conhecendo a casa ao lado de Dalton Camargos, a sala principal era ocupada pelo artista guatemalteco Esvin Alarcón Lam, mas todo o resto permanecia fechado. Um dos quartos vinha sendo usado como depósito de cadeiras. As janelas emperradas, as paredes descascadas.
Essa parte da casa foi então cuidada para pode se transformar também em espaço expositivo. A ideia de pintar as paredes de branco, como o proverbial cubo branco de uma galeria de arte, teve a ver com criar um espaço neutro – para que pudesse ser riscado, literalmente riscado.
Desferir o Golpe, a exposição de Ludmilla Alves, se desdobra assim por seus dois primeiros ambientes cortejando elementos do desenho, da escultura, da instalação e até da performance. As paredes, ainda há pouco tão branquinhas e recém-pintadas, receberam estruturas de fios pendentes a suspenderem pedras e carvões. À medida em que esses materiais encostam, roçam ou se chocam contra a parede, involuntariamente ou ao sabor da intenção do visitante que ali “desferir um golpe”, as marcas deixam inscrições.
De certa forma, eia a sequência de uma pesquisa que tinha levado Ludmilla a erguer quatro pêndulos com carvões num muro na Praça dos Cristais, há um par de anos. Ela compara os dois trabalhos. “Antes os materiais estavam em repouso, no tempo amortecido da praça. Aqui encontramos o repouso após o golpe. Este momento tem a ver também com assumir o risco daquilo que não posso prever. Funciona como um gatilho. A energia potencial que pode se romper a qualquer instante.”
A pesquisa por materiais leva Ludmilla Alves – e o visitante – ao terceiro quarto da Casa Niemeyer. Um quarto que, ao contrário dos dois anteriores, tem um largo armário embutido a ocupar inteiramente uma de suas paredes, emprestando um incontornável aspecto residencial ao espaço.
Ludmilla aproveitou esse armário para fazer dele um comentário sobre sua própria poética. Os materiais que estão sendo potencializados nas outras salas – pedras e carvão – aqui aparecem em estado ainda mais bruto, armazenados nas gavetas como antes estiveram estocados por meses ou mesmo por anos no seu ateliê.
Essas pedras avermelhadas foram colhidas por ela e César no Noroeste, num solo revolvido por obras. Um canteiro que fez a artista pensar na paisagem desolada criada pelo cineasta Andrei Tarkovsky para o filme Stalker. Já os carvões foram queimados pessoalmente pela própria Ludmilla, em seu ateliê na Colônia Agrícola 26 de Setembro, a partir dos restos de uma árvore derrubada por tempestade no Campus Universitário Darcy Ribeiro.
“Fico pensando no quanto a minha relação com o carvão é da mesma ordem da minha relação com a pedra. Acho que isso tem a ver com a transmutação do fogo, a transformação que o material sofre com a queima, as rachaduras, a petrificação. Penso muito nessa palavra: petrificação. Fica difícil lembrar o carvão como o material orgânico que é. Eu já me peguei chamando um carvão de pedra.”
Terminando o corredor, uma breve escada desce à suíte ocupada por César Becker com Escavar a Ruína. Após um pequeno denteamento sala/quarto, o segundo ambiente se abre para um jardim interno – e tudo ali estava francamente ruinoso quando o artista chegou para conhecer o lugar.
A sala se encontrava bem maltratada e o quarto, detonado. A ampla porta de vidro que dá para fora era mantida permanentemente fechada, pois não se sabia da chave. Rolava um mini efeito estufa que fazia o chão rachar, a parede descascar e o mofo se espalhar pelo ambiente. O cheiro não era nada agradável, conta César. O jardim estava inteiramente tomado pelo mato.
César Becker já vem há alguns anos trabalhando com a terra vermelha do Planalto Central. Quando se deparou com aquele jardim, percebeu que estava diante da possibilidade de trazer para sua obra uma questão um tanto simbólica. Ele estaria a lidar diretamente com o solo sobre o qual o mais famoso morador desta casa tinha construído Brasília.
“Daí surgiu a ideia de trabalhar com o duplo: considero essas duas obras dentro de uma mesma unidade e ainda dentro de um pensamento escultórico, a relação de negativo e do positivo, que faz referências a procedimentos clássicos e tradicionais da escultura, como a escultura de talha e a escultura de modelagem.”
O “processo de transitoriedade”, explica César Becker, é comum a todas suas esculturas em terra vermelha. Que ele tenta compactar ao máximo possível, cada mínima partícula desse material, tendo a total consciência de que uma hora a gravidade vai levar a melhor – e fará tudo perecer.
Ao transplantar para o positivo de sua escultura um tanto da vegetação original do jardim no qual abriu o negativo, ele acrescentou mais um elemento – desta vez orgânico – em seu objeto escultórico fadado à ruína. E vem acompanhando, ao longo das semanas da exposição em cartaz, o lento desmoronar da peça, as rachaduras que se abrem na terra.
Tanto Ludmilla quanto César trabalharam na Casa Niemeyer em parceria com o curador Leno Veras, brasiliense que hoje mora no Rio de Janeiro, antigo colega de Ludmilla nos dias de Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Leno, em seu texto de curador, escreveu justamente sobre o tempo, a passagem do tempo: “o patrimônio e seu arruinamento como única certeza”.
Cabe aos artistas, como Ludmilla Alves, César Becker e Claudio Cretti, tentar entender a passagem do tempo, enxergar nas antigas coisas novos significados e deixar para trás um pouco de si para o tempo futuro.