Uma manhã no Ninho: arte, tecnologia e agroecologia
O grupo vem se encontrando numa casa no Condomínio RK, em Sobradinho, para trabalhar nos três interesses comuns entre seus membros
atualizado
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A arte pode pulsar para além de museus e galerias. Vencidas as limitações do espaço no qual tem sido confinada por costumes e facilidades comerciais, ela pode reencontrar uma de suas funções mais primitivas: conectar o homem com o ambiente ao redor.
É justamente essa a ideia que atravessa e alimenta o Ninho, coletivo de artistas e profissionais surgido há um par de anos. O grupo vem se encontrando numa casa no Condomínio RK, em Sobradinho, para trabalhar nos três interesses comuns entre seus membros: arte contemporânea, interatividade, agroecologia.
O ritmo das atividades cresceu nos últimos meses, embalado pelo Fundo de Apoio à Cultura e por uma parceria com a pesquisadora de arte Malu Fragoso, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que tem ajudado os jovens do Ninho a darem conta de seus interesses interdisciplinares. Os primeiros resultados dessa experiência serão agora apresentados ao público em regime de ateliê aberto – numa série de atividades que começa no sábado 18 de agosto e segue até primeiro de setembro.
Antecipando um pouco do que será apresentado nos próximos dias, a coluna Plástica visitou o Ninho há algumas semanas, numa manhã de sábado.
Mauricio Chades, autor do convite para essa visita, lembra que ele e Yasmin Adorno ainda dividiam ateliê no Córrego do Urubu, em 2015, quando sentiram a necessidade de expandir suas pesquisas para além dos vídeos e das fotografias que já faziam. Nessa mesma época, perceberam intenção semelhante em outra dupla de artistas. Renato Perotto e André Freitas já moravam nesta casa no Condomínio RK.
Os quatro artistas, de repente ligados por um interesse em comum mas ainda bastante imaturo, sentiam que para conciliar elementos orgânicos e tecnológicos precisariam de profissionais de formação um tanto mais específica. Através de um anúncio classificado chegaram a Sofia Carvalho, com seu conhecimento em agricultura. E através de uma amiga artista, entraram em contato com Karen Schmidt, engenheira eletricista.
O prezado visitante que chegar ao Ninho nem precisa entrar na casa para já encontrar a primeira obra de que se orgulham os seis membros originais do coletivo, que hoje se desdobra entre tantos colaboradores atingindo duas dezenas de integrantes. O próprio quintal da casa é uma das obras mais caras a eles.
Jardim Florestal, eis o título da obra que teve em Renato Perotto seu primeiro semeador e que depois encontrou em Sofia Carvalho seu atual viço. Foi Renato que, na condição de mais antigo dos atuais moradores, começou o plantio. Em vez de jogar fora o resto das frutas que ele comia, deitou na terra suas sementes e pôde assistir o surgimento, nos fundos da cozinha, de um abacateiro, um par de mamoeiros, uma graviola.
Sofia chegou, em dezembro, para ajudar com seu conhecimento do chamado sistema agroflorestal. Acostumada a pensar em roças e grandes extensões, aqui ela teve que se virar entre os muros de um terreno de condomínio. Então encarou o Ninho como se estivesse diante do estrato baixo de uma floresta vertical, onde pouco bate a luz do sol.
“Renato queria plantar comida: batata doce e inhame. Mas o que não havia sido colhido estava abafando o que estava embaixo, tive que primeiro cuidar disso”, conta Sofia. “Plantei também ervas e aroeira para trazer mais nutrientes. Cuidei da área que estava abandonada. Grama pede manejo e irrigação. Quando não tem isso, o capim e essa erva espontânea, a capoeraba, tomam conta, fazendo o trabalho que não estamos fazendo. A dinâmica da natureza é cobrir a terra, porque a terra, quando fica nua, resseca e racha, matando as minhocas e os microrganismos que vivem nela.”
Para enriquecer a terra, Sofia deixava ali mesmo as plantas que ia cortando. Os amigos espalharam cartazes na vizinhança pedindo a doação das podas de seus quintais. Todo esse material orgânico, em vez de ser desprezado e jogado fora, enriqueceu o chão do Ninho. “Quem olha pode pensar, meu Deus, que bagunça, que mato”, ela ri. “Mas assim a gente conseguiu bombar os componentes orgânicos do solo. Hoje você sente a umidade, percebe a atividade biológica, muito diferente do que vinha acontecendo quando tinha apenas capinzinho e umas ervas.”
Entre as plantas de Sofia Carvalho, ali escondidas sob as largas folhas de abobrinha e os pés de café, foram instalados alguns aparelhos eletrônicos. Estão protegidos das intempéries e da irrigação por tampas de plástico e potes de Paçoquita. O que pode causar má impressão ao visitante por parecer reles lixo industrial, na real, apresenta-se como a ponte tecnológica entre a agroecologia e a arte contemporânea.
Essas são as Estações Sensoriais. Pequeninos aparelhos que dão conta de capturar constantemente alguns dados físicos. Umidade, temperatura, sensação térmica, intensidade luminosa, etc. Esses números ficam armazenados em nuvem e, quando entram as peripécias da engenheira Karen Schmidt, podem ser processados em software para se tornarem elementos visuais e/ou sonoros, numa habilidade dos artistas do Ninho.
Por isso uma cabine de isolamento acústico, que já esteve em consultório de otorrino, foi parar no Ninho. A ideia é que o visitante entre nela e experimente a Sonância do Tempo. Nessa composição, cada sensor do quintal fica responsável por disparar, via mensagens midi, um instrumento musical digital. Cada novo dia, uma nova música é assim construída a partir dos dados colhidos nas 24 horas anteriores.
Semelhante ideia de composição alimenta Relógio das Sensações. Dados da estação central são interpretados em linhas e cores. O formato emula um relógio – e do computador será projetado na parede da cozinha.
O Ninho emplacou seu projeto no Fundo de Apoio à Cultura fazendo um híbrido de duas modalidades: pesquisa e desenvolvimento de oficinas. A primeira delas é justamente esta que está sendo levada na casa-ateliê sob tutoria de Malu Fragoso. E a segunda tem a ver com as visitas que eles têm feito ao Centro Educacional 03 de Sobradinho.
Para as crianças, eles têm ensinado rudimentos de agroecologia, noções de como fazer uma horta e também algumas questões de sustentabilidade. Essas, aliás, já estão a todo vapor na casa do Ninho – e se encontram possíveis de serem reproduzidas por qualquer um que visite o coletivo ou que ao menos se interesse em diminuir o impacto de sua presença no mundo.
No jardim, uma composteira feita a partir de uma geladeira antiga recebe resíduos de madeira, para que ali se decomponham e se tornem adubo. Uma forma de alimentar o sistema agroflorestal criado ao redor da casa sem a necessidade de se recorrer a agrotóxicos: suas eventuais deficiências sendo corrigidas com elementos orgânicos.
Não muito distante, uma segunda composteira tem a forma de um balde alaranjado sem fundo – fincado diretamente na terra – e por isso carinhosamente chamada de Vulcão. Inspirado em um sistema de origem africana, ele recebe resíduos como frutas e restos de comida para se decomporem ali mesmo, em contato com o solo.
Um pau de selfie segura um celular apontado permanentemente para o Vulcão – o aparelho dispara uma fotografia por dia, sempre na mesma hora, e essas imagens são combinadas pixel por pixel, embaralhadas, formando uma obra abstrata, reciclando lixo – literalmente – em obra de arte
Sobre a mesa da cozinha, uma lixeira/abajur ilumina assim do jeito mais palpável o ciclo da matéria. “A comida vira lixo, que vira adubo, que vira comida”, lembra Renato Perotto, contando que dali os resíduos vão para o minhocário, um objeto central na sala da casa, dentro do qual uma colônia de minhocas lenta e silenciosamente vem desempenhando há meses o seu trabalho. E parte da tarefa que o Ninho estabeleceu para si é fazer entender a importância de uma minhoca.
Comida vira lixo, que vira adubo, que vira comida, que vira lixo – que vira arte.