Uma manhã no Memorial dos Povos Indígenas (ou o que restou do fogo)
Os itens expostos no local poderiam ser usados para rituais, caça ou como decoração
atualizado
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Apenas cinco dias antes do incêndio que arruinou o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, foi aberta ao público a exposição Os Primeiros Brasileiros, no Memorial dos Povos Indígenas, na Praça do Buriti.
Em meio a toda consternação e justa revolta que baixaram nos últimos dias, resta esse pequeno alento. Uma fração do acervo de arte indígena reunido pela bicentenária instituição fluminense acabou preservado – justamente por ser encontrar exposto bem longe da sede.
Por conta disso, a coluna Plástica mudou o rolê esta semana. Em vez de mais um giro pela cena habitual da arte contemporânea brasiliense, tomamos o Eixo Monumental para visitar o prédio desenhado por Oscar Niemeyer.
Estrategicamente localizado entre o Palácio do Buriti, na margem Norte, e o terreno onde mais tarde seria erguida a Assembleia Legislativa, na margem Sul, o prédio foi erguido em 1982. Durante bons anos não funcionou de fato, ficando sob permanente ameaça de se tornar espaço de apoio para a burocracia vizinha. Até que o Governo do Distrito Federal, em 1999, fez valer sua verdadeira função.
O Memorial dos Povos Indígenas está atualmente administrado pelo Centro de Trabalho Indigenista, em gestão compartilhada com a Secretaria de Cultura do Distrito Federal. Nessa retomada, tem recebido mostras de fundo antropológico e artístico. Caso desta exposição Os Primeiros Brasileiros que, aberta em 28 de agosto, segue em cartaz até 16 de dezembro.
A mostra foi montada sob curadoria de João Pacheco de Oliveira, antropólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele teve peças e documentos do Museu Nacional como base para o trabalho. A exposição segue em itinerância há mais de dez anos, passando por Recife (2006), Fortaleza (2008), Rio de Janeiro (2010), Natal (2014) e Salvador (2016), além da cidade de Córdoba (2013), na Argentina.
Os Primeiros Brasileiros, cá na nova capital, se desenrola no ritmo da arquitetura de Niemeyer, seguindo as paredes curvas de seu prédio em forma de oca, num trajeto que se revela uma suave descida até o pátio interno da casa. Ao longo desse trajeto, o professor João Pacheco de Oliveira pretende apresentar os povos nativos da região Nordeste: da costa atlântica aos sertões, passando pelas duas margens do Rio São Francisco.
Sua ideia é mostrar como esses povos foram encontrados, no primeiro momento, pelo forasteiro europeu e como, ao longo dos séculos de colonização, acabaram por se integrar – ou não – ao Brasil. A visita, então, se inicia por reproduções ampliadas de obras de homens brancos. Plotagens de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Victor Meirelles (1832-1903), por exemplo. Este seria o ponto de vista do colonizador.
Demoramos alguns bons metros de exposição para encontrar as primeiras peças daqueles que, de fato, são os protagonistas dessa história. E quando chegamos a elas, as informações então começam a rarear. Os textos de apoio, que vinham acompanhando cada módulo expositivo, localizando o visitante no tempo e na História, não mais aparecem. Permanecessem apenas breves indicativos de que esta ou aquela peça em cestaria ou cerâmica pertencem a este ou aquele povo.
No livrinho da mostra, que o visitante recebe ao chegar à exposição, o curador escreve que essa dinâmica foi de caso pensado. Trata-se de um exercício de alteridade, ele acredita, em que o visitante vai pouco a pouco ingressando em outro espaço, demarcado pelos artefatos indígenas. João Pacheco de Oliveira acredita que, assim, “a complexidade da tradução cultural” fica assinalada ao público. “A interlocução dos objetos e a geração de significados se estabelece, sobretudo, com as imagens e as músicas, sem a mediação das palavras, idioma supostamente mais claro e universal.”
Toda exposição é um jogo de sedução, com suas escolhas e suas apostas. Preferiu-se desta feita uma abordagem, digamos, mais fenomenológica, que espera que o visitante permaneça com os sentidos abertos para o que estiver vendo e ouvindo ali naquele lugar, naquele momento. E que isso resolva seu entendimento, sem mais textos informativos que somem camadas teóricas. Aparelhos de som, alimentados por pendrive, no alto das paredes da casa, enchem o ambiente com cantos dos povos do Nordeste brasileiro.
Uma digressão nesse trajeto sem palavras, uma concavidade criada como uma pequena oca dentro da grande oca de Niemeyer, está reservada para os objetos religiosos e as vestimentas ritualísticas. São roupas feitas de palha e adornadas por plumas e penas de pássaros. Elas são usadas em cerimônias pelos Praiás, os “zeladores dos encantados”, dentro da tradição do povo Pankararu.
Um cartaz afixado mais adiante, sem adornos ou frisos, apenas letras frias e duras de serem lidas, também é bastante eloquente ao simplesmente listar em ordem alfabética os nomes dos povos extintos no Nordeste brasileiro. Um nome após o outro, nações inteiras que não mais conheceremos.
Para fechar a narrativa, encerrando a exposição e terminando a descida do Memorial dos Povos Indígenas, os textos voltam às paredes dando conta daqueles que ainda estão entre nós. Aqueles povos que têm conseguindo sobreviver ao Brasil.
Xucuru, Tremembé, Pankararu, Fulni-ô, Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãe, Tuxá, Kiriri, Tupinambá, Tapeba, Kariri-Xocó.