Uma discreta presença: Athos Bulcão e a arte contemporânea brasiliense
Também no CCBB, segunda mostra mostra o legado de Bulcão na arte do Distrito Federal
atualizado
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Embora mui rica, a mostra “100 Anos de Athos Bulcão” não se esgota em si mesma. Já devidamente esmiuçada no episódio de semana passada da coluna “Plástica”, a retrospectiva que o Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília está a abrigar até primeiro de abril se desdobra ainda em uma segunda mostra.
Esta outra exposição, uma espécie de derivação da primeira, chama-se “Rastros de Athos” e traz o trabalho de duas ou três gerações de artistas brasilienses que vivem e produzem sob a sombra de Athos Bulcão (1918-2008).Sombra tão gentil e acolhedora quanto incontornável. Uma vez que a obra de Athos Bulcão se confunde com a paisagem da nova capital desde a sua inauguração – ou melhor, desde antes disso, desde as primeiras maquetes, os primeiros esboços. Natural, portanto, que a esta altura a obra de Athos Bulcão já se confunda com o pensamento estético e a apreensão visual de quem cresceu pelas superquadras e pelos pilotis de Brasília.
“Notamos a presença do Athos como uma presença discreta que vai se infiltrando no pensamento da cidade, no pensamento dos artistas da cidade”, conta Marília Panitz, gaúcha radicada na cidade desde a década de 1980, professora aposentada da Universidade de Brasília e personagem atuante do cenário da arte brasiliense.
“Se você conversa com artistas brasilienses muito jovens para terem convivido pessoalmente com Athos, artistas como Virgílio Neto e Leopoldo Wolf, eles podem não falar particularmente de Athos como pessoa. Mas eles falarão que a configuração do espaço nos desenhos deles tem a ver com suas experiências no espaço urbano brasiliense. Assim como Athos, por sua vez, contava que os espaços de seus trabalhos indicavam os vazios de Brasília.”
Marília Panitz, ao lado de André Severo, assina a curadoria de ambas as exposições sobre Athos Bulcão. Mas foi particularmente dela a ideia de aproveitar a itinerância do evento – que também passará por Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro ao longo do ano – para circular alguns dos nomes mais importantes da atual arte brasiliense.
Uma única obra foi especialmente criada para a ocasião. Andréa Campos de Sá e Walter Menon montaram em parceria esta instalação: uma mesa com tampo de mármore, três xícaras e pratos alinhados, apenas duas cadeiras. O texto escrito na parede remonta, como num conto, à época em que Walter auxiliava Athos em seu ateliê e Andréa trabalhava como sua monitora no Instituto de Artes da Universidade de Brasília.
O velho professor tomando um chá no fim de tarde com os dois aprendizes, admirando com eles um livro de Paul Klee, comentando sobre as cores da pintura recém-terminada, à medida em que o sol se punha e mudava a luz da sala.
Desligado da UnB após a intervenção militar na instituição, Athos Bulcão, assim como outros professores, teve que aceitar ser reintegrado à universidade, mesmo que brevemente, na década de 1980, para poder ter direito à aposentadoria. Foi nessa época que ele conviveu mais proximamente com muitos dos artistas aqui reunidos.
Ralph Gehre não chegou a ter aulas formais com Athos Bulcão na UnB. Ele se formou em Desenho e Plástica e em Arquitetura e Urbanismo ainda nos anos 1970, antes do retorno de Athos à casa. Mas, como jovem pintor, Ralph frequentava o ateliê de Athos, a quem ele também chamava de “professor”, assim como todos os demais rapazes faziam.
Numa conversa entre curadores e artistas, realizada semana passada no CCBB, Ralph Gehre tomou a palavra para lembrar sua experiência – e seu assombro – diante do olhar absoluto de Athos. O professor era capaz de apontar exatamente quais e quais cores tinham sido utilizadas para atingir determinado resultado numa pintura, e ele fazia isso simplesmente de bater o olho na tela.
Athos desenvolveu tal habilidade, disse Ralph, por ter estudado as composições cromáticas de acordo com a prática do renascimento, quando determinado tom desejado por um pintor era atingido ao se sobrepor tal cor a tal outra cor – uma técnica empregada por mestres como Giotto (1267-1337) e Leonardo (1452-1519).
Professor de pintura da Universidade de Brasília, contemporâneo de Ralph Gehre e de Marília Panitz, ao lado de quem trabalhou no coletivo Gentil Reversão, Elder Rocha também está presente nesta exposição.
Elder entra com uma pintura de sua recente série “Soft Porn” (2016). Nesses trabalhos, o artista limpou suas composições radicalmente, abrindo vazios -justamente aqueles espaços de que Marília comentava sobre Athos – ao mesmo tempo em que mantém a poética de fechar um trabalho com três gestos, três elementos. No caso específico, os três gestos: fundo, figuras e texturas.
O diálogo que Marília Panitz propõe entre as obras desses artistas e o trabalho de Athos Bulcão, portanto, fica especialmente claro nessa sequência que reúne Elder Rocha e Ralph Gehre.
Mesmo sendo bem mais jovem, o pintor Pedro Ivo Verçosa também pode entrar nessa linhagem. Afinal, ele pertence à mesma geração de Virgílio Neto e de Leopoldo Wolf, citados por Marília Panitz como artistas que trazem para suas composições os espaços brasilienses.
Aqui nesta mostra, Pedro tem duas contribuições a serem feitas. “Sobre Todos os Meus Vazios/Desdobramentos” (2017) traz quinze peças de cerâmicas divididas cartesianamente, alinhadas em três patamares paralelos, cada uma dessas prateleiras se confundindo em cinza com a parede, permitindo que cada cerâmica se projete no espaço – respirando para além daquela implacável bidimensionalidade à que toda pintura num primeiro momento parece condenada.
De modo que aqui a relação de Pedro Ivo Verçosa com o legado de Athos Bulcão passa por um formalismo de linhas, por uma estrutura de cores e também por uma dinâmica espacial.
O mesmo se dá, por exemplo, com a obra de Luciana Paiva, pertencente à série “Vértice” (2017), que abre esta página – e que recebe o visitante logo na primeira parede de “Rastros de Athos”.
A outra contribuição de Pedro Ivo Verçosa a “Rastro de Athos” se apresenta em uma parceria do artista com Felipe Cavalcante: “Azulejos 1” (2010) promove um agradável estranhamento.
A obra consegue contrapor em absoluta harmonia duas culturas, duas mídias e dois tempos que, num primeiro pensamento, deveriam ser antagônicos, levando uns traços de desenho mui próprios aos quadrinhos para dentro da azulejaria. Cada azulejo se repartindo numa história que nunca se fecha, numa narrativa de (im)possibilidades, no entanto rica em sugestões.
É de se pensar que a azulejaria seria mesmo campo fértil para “Rastros de Athos” – e a curadoria preparou uma seleção de painéis que podem mesmo se confundir com os do mestre quando postos lado a lado. Alexandre Mancini, João Henrique Cunha Rego, Lígia de Medeiros e o Coletivo Transverso colaboram com seus próprios azulejos.
Mas alguns desses azulejos, não se deixe enganar, são de mentirinha. Porque João Angelini, mais uma vez, aprontou das suas. Tomando prosaicos pedaços de reboco como suporte, ele pintou em técnica a seco algumas composições que remetem aos azulejos barrocos.
(Onipresentes, João Angelini e sua peculiar azulejaria também podem ser encontrados, neste momento, em outras duas mostras coletivas: “Contraponto”, no Museu Nacional Honestino Guimarães, e “Os Fios e a Trama”, na Referência Galeria de Arte.)
Originais de Athos Bulcão, aqui e ali, pontuam as paredes de “Rastros de Athos” deixando mais visíveis as referências formais, materiais, históricas e até emocionais que se empilham ao longo da visitação. Mas talvez valha mais deixar a sala de exposição, nem que seja por um instante, e olhar para além daquelas paredes…
“Hoje em dia muitos artistas jovens estão lutando contra os espaços convencionais, não é mesmo?”, nota o curador André Severo. “E isso não é de agora. A cada geração de artistas, a gente acompanha uma pequena luta para vencer o espaço da galeria, vencer as hierarquias dos espaços convencionais e conquistar o espaço da cidade. Tendo isso em mente, fica curioso notar como o espaço natural do Athos Bulcão é o espaço da cidade. Curioso e potencialmente muito inspirador…”