Rafael da Escóssia: brasileiro, solteiro, artista, bicha-camicase
Dentro dum clima de paranoia e contra-informação, artista apresenta-se na contramão do sentimento predominante de intolerância
atualizado
Compartilhar notícia
O ambiente destas eleições brasileiras não poderia estar mais insalubre. Dentro dum clima difuso de paranoia e contra-informação, Rafael da Escóssia apresenta-se na contramão do sentimento predominante de intolerância, criando espaço para praticar a sua maneira mui particular de crítica social. Que ele, como artista, chama de colagem.
Rafael da Escóssia se lançou como Bicha Camicase numa anti-candidatura à deputado federal nestas eleições. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, ele vem se dedicando a discutir, através da arte, alguns temas mui caros à sua formação profissional e pessoal. A arena eleitoral sendo o episódio mais recente de uma série de investidas que vêm num crescendo ao longo do último par de anos.
“Bicha Camicase sou eu mesmo. Não é uma personagem. É como um codinome de guerrilha, quase como uma tática de clandestino”, apresenta-se Rafael da Escóssia, de cara lavada, às portas da XXX Arte Contemporânea, galeria no Condomínio Verde do Jardim Botânico. “Não uso a drag como uma forma de pensar a feminilidade, mas como uma forma de pensar minha masculinidade. Não é meu objetivo, de forma alguma, fetichizar uma narrativa dissidente. Meu objetivo é pensar o meu lugar de fala enquanto homem na sociedade e o que isso significa, quais as implicações disso.”
Comitê central da anti-candidatura, a XXX abriga até o domingo 4 de novembro, uma exposição intitulada justamente Bicha Camicase, na qual o visitante pode acompanhar as táticas de combate e o processo artístico desenvolvidos por Rafael da Escóssia.
“Entendo todo meu trabalho como colagem, usando esse termo do ponto de vista mais abstrato. Comecei produzindo, de fato, colagens sobre papel em pequeno formato. Logo depois, passei por um momento de pesquisar quase escultoricamente as colagens em grande formato. Depois, noutro momento, pensei nas colagens dos produtos de maquiagem sobre o meu corpo e as colagens do meu corpo drag sobre os espaços da cidade e sobre o ambiente político das eleições. São colagens no sentido de inscrições. Para mim, o que define o Bicha Camicase, mais do que a drag, é a ideia de inscrição e subversão.”
A anti-candidatura começou como performance puramente virtual nas redes sociais, no mesmo dia em que as campanhas oficiais foram liberadas pelos tribunais eleitorais. E na data em que os horários em rádio e televisão foram abertos, Bicha Camicase lançou seu vídeo pela internet.
Em seguida, as ações se tornaram performances físicas, no corpo a corpo semelhante ao dos políticos à caça de votos, em espaços públicos como a Rodoviária do Plano Piloto. Adesivos, santinhos, camisetas, cartazes e banners foram encomendados, sempre na intenção de emular de forma espirituosamente tosca o estilão publicitário das campanhas eleitorais. Muito apropriado em tempos de Jair Bolsonaro, o mote da Bicha Camicase é a abolição da culpa e do sistema penal. “Pau no lombo nunca mais!”
O único momento mais tenso, lembra Rafael, foi a carreata que partiu do Campus Universitário Darcy Ribeiro, cruzou a Ponte JK e chegou na XXX para a abertura da exposição, no início deste mês de outubro. Os carros do artista e de seus amigos (e cabos eleitorais) seguiam embalados por uma música da artista Suyan de Matos, inspirada na campanha #elenão. Alguns motoristas pelo caminho se mostraram hostis à movimentação, reagindo com buzinadas, provocações e palavras de baixo calão.
A primeira performance Bicha Camicase, lembra Rafael da Escóssia, se deu em dezembro do ano passado, dentro da austera Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Ele defendeu sua tese de conclusão de curso montado de drag queen (https://www.metropoles.com/
Pouco antes, ainda sem ter abraçado a ideia de performance, mas já ciente daquele que seria o principal ponto de sua anti-candidatura, Rafael fez uma ação com livros da biblioteca da UnB especialmente selecionados por ele após anos e anos de estudo. Em manuais de Direito Penal, escolheu os trechos mais sensíveis no seu entendimento para carimbar nas margens três frases de efeito à guisa de comentário:
“Este é um manual de direito canônico.” “Não existe pena justa.” “A culpa serve ao genocídio.”
Reunido na XXX para esta exposição, o Kit-guerrilha-camicase (2018) funciona como memorabilia de uma das primeira ações de Rafael como drag. Ele visitou o Supremo Tribunal Federal, onde pôde entrar graças à sua carteirinha de estudante da UnB, devidamente referendada por uma carteirinha de estagiário da Ordem dos Advogados do Brasil. Só não pôde tirar fotografias – normas da Casa – então teve que se contentar com as imagens da TV Justiça como prova de sua presença.
Rafael sentou-se no plenário vestido de Bicha Camicase e acompanhou a sessão sem ter sido incomodado pelos seguranças ou perceber qualquer tipo de censura. Algo que, ele acredita, tem muito a ver com o fato de ser um homem branco, devidamente credenciado para ali permanecer – e, ele brinca, por estar “finérrimo”, mais bem vestido que as senhoras ministras.
Baseado na obra Museu Portátil (1936), do francês Marcel Duchamp (1887-1968), o kit de Rafael traz também alguns daqueles manuais de Direito que ele esteve a carimbar na UnB. “Essa também se tratou de uma atividade de inscrição e subversão. Eu me insiro nesses livros de grande circulação, best sellers muito voltados para concursos públicos, e ofereço um contraponto, um tensionamento para o conteúdo explícito deles. Busquei trechos que tratam da legitimidade e da seletividade do sistema penal. Entendo que o conteúdo desses manuais, uma vez que legitima o poder punitivo do estado brasileiro, gera um efeito genocida.”
Estamos claramente no trecho da exposição que Rafael da Escóssia chama de “educandário jurídico”. Aqui ele se vale de sua formação para apontar, pelo lado de dentro do sistema, alguns pontos em falso. Esse interesse cruzado de Rafael, entre estudos jurídicos e arte contemporânea, não é nada corriqueiro e serve para se discutir tanto o abuso do sistema penal brasileiro quanto o vazio da burocracia cotidiana em que todo o proceder jurídico está assentado.
Na performance-instalação Públicas-formas para extração de legitimidade (2018), o artista foi ao cartório mais próximo levando uma declaração que faria Duchamp sorrir. “Eu, Rafael da Escóssia Lima, brasileiro, solteiro, artista, bicha-camicase, aquariano com ascendente em sagitário, anarco-penalista, performer drag, homem branco privilegiado (…) declaro, para os devidos fins de Direito e a quem interessar, que, entre os dias 23 e 27 de julho de 2018, produzirei cópias autenticadas desta declaração até que o conteúdo de esvaia”.
E foi exatamente o que ele fez. Após produzir essa primeira declaração, autenticou firma e reconheceu firma. Tirou quarenta autenticações de uma só vez e, ao longo dos dias seguintes, conforme devidamente anunciado, ele foi colando cada uma dessas validações sobre uma cópia escaneada do original, até que – quarenta laudas mais tarde – tivesse para si um documento perfeitamente ilegível, ilegal e vazio de conteúdo.
Esta é a segunda mostra individual de Rafael da Escóssia. Também realizada na XXX, em setembro do ano passado, a primeira, Um Menino Bonzinho (https://www.metropoles.com/
Desde então, ele vem se dedicando às colagens conceituais de Bicha Camicase, que se manifestam basicamente como performances. Rogério Carvalho, dono da XXX, acompanha de perto a trajetória do artista e achou que seria apropriado chamar Luísa Gunther para a curadoria desta segunda mostra. Professora do Instituto de Artes da UnB, ela se dedica à performance e ao trabalho em fotodança que parte justamente do registro de ações em espaços públicos.
De modo que esta exposição foi pensada conjuntamente por Rafael e Luísa. E quase tudo que o visitante encontra na XXX é uma memória de algo que aconteceu em determinado espaço, em determinado tempo. Alguns desses registros ganham a forma fotográfica, como Rafael montado como se fosse a própria Rainha Guilhermina que batiza a rua do bairro do Leblon, Rio de Janeiro, que ele visitava seguidamente com a família.
Outros desses registros ganham corpo, volume. São objetos, como as bijuterias que ele comprou na Rodoviária do Plano Piloto para se montar como Bicha Camicase e assim desfilar entre as lojas caríssimas do Shopping Iguatemi. Ironizando tanto o consumo da alta burguesia do Lago Norte quanto os valores irreais praticados pelo mercado da arte, ele criou “uma espécie de mais-valia” em que multiplicou o valor pago originalmente por cada uma dessas peças pelo atual salário mínimo (R$ 954,00).
“Todas essas obras têm muito a ver com ser quem eu sou e estar onde eu estou”, diz Rafael da Escóssia, também conhecido como Bicha Camicase. “Do Iguatemi ao Leblon, estes são retornos a espaços em que já estive. Lugares que frequentei na infância e na adolescência. Ou mesmo mais recentemente, na vida de um estudante de Direito: a universidade e a biblioteca, o cartório, o plenário do Supremo. Mas agora estou entrando neles como drag e repensando a minha presença.”