Para onde a onda pode nos levar: uma manhã no Espaço Renato Russo
O equipamento cultural seguia fechado desde 2013, por ordem do Corpo de Bombeiros e do Ministério Público
atualizado
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Por obra e graça deste ano eleitoral, o Espaço Cultural Renato Russo foi reaberto nas últimas horas em que seria possível para o governador Rodrigo Rollemberg inaugurar o que quer que fosse a tempo das eleições de outubro e novembro.
Na tarde do sábado 30 de junho, com faixa de inauguração e artistas ao redor, o Espaço Cultural Renato Russo reabriu. O histórico aparelho cultural da 508 Sul se encontrava fechado desde 2013 por ordem do Corpo de Bombeiros e do Ministério Público. As reformas tiveram início apenas em 2016 e, após quinze meses de trabalho e dois adiamentos do prazo de entrega, enfim pôde ser feita a festinha.
Embora, a rigor, a 508 Sul ainda não esteja de fato inteiramente devolvida aos artistas e à comunidade. As obras prosseguem no segundo andar. (E a Rádio Cultura FM, que durante toda a interdição da casa continuou funcionando ali, foi transferida provisoriamente para o térreo, abrindo espaço para a sequência da reforma.)
De toda forma, para a tal inauguração fazer sentido, a classe artística foi chamada a prestar sua colaboração. Após duas edições no Museu Nacional Honestino Guimarães, a mostra ondeandaonda mudou de paradeiro e desta feita ocupa as galerias Parangolé e Rubem Valentim, no térreo da 508.
Uma espécie de volta ao lar, pode-se dizer. Enquanto outros espaços seguem interditados à cultura brasiliense, como o Teatro Nacional e o Museu de Arte de Brasília, a 508 começa a reencontrar sua vocação original, quando na década de 1970, o então chamado Centro de Criatividade se tornou polo de criação e divulgação para as artes plásticas, funcionando colado aos teatros Galpão e Galpãozinho.
Atravessar novamente os portões da 508 Sul funciona como retorno emocional a um passado nem tão distante. E a mostra ondeandaonda, por sua vez, pode ser entendida como uma tomada de pulso do tempo presente das artes visuais do Distrito Federal. Sua primeira edição, bolada por Wagner Barja, diretor do Museu Nacional, levou para dentro daquela instituição uma seleta de obras colhidas no varejo do circuito independente de galerias e espaços culturais.
Era o ano de 2015 e, de fato, as artes visuais brasilienses estavam a atravessar um momento ímpar dentro da história da jovem capital, com a criação de espaços para além do Plano Piloto e um sentimento geral de abertura para diferentes propostas expositivas. Um crescimento que se deu, vale notar a ironia, justamente na omissão do poder público, na ausência forçada de tantos endereços oficiais fechados a esperar por reformas e reformas e reformas.
Esta terceira edição mantém o olhar generoso e plural de Barja, mais uma vez agitando seu caderninho de contatos e assinando a curadoria da mostra. Sua cartografia dá conta de duas dezenas de espaços independentes – da Asa Norte ao Guará, de Sobradinho a Olhos D’Água – boa parte deles contemplados no início deste ano pela inédita iniciativa BSB Plano das Artes, outro indício desses ares de renovação que sopram nas artes visuais.
Visitando a 508 no início da manhã da quinta-feira 12 de julho, não se pode ter muita ideia do corre-corre que foi a montagem da exposição, dias antes, com artistas trabalhando nas galerias literalmente ao mesmo tempo em que operários finalizavam as obras do térreo. Mas alguns detalhes, como as luzes ainda apagadas na Galeria Parangolé e o pessoal da limpeza passando esfregão em pleno horário de visitação, sugerem que ainda se trata de um espaço cultural lentamente retomando suas atividades.
Como o espaço expositivo, fisicamente falando, arquitetonicamente falando, aqui na 508 é notadamente menor do que a vastidão monumental do Museu Nacional, a expografia sofreu radical verticalizada. Quadros sobre quadros, parede acima. Na Parangolé, logo na entrada, lá do alto, uma pintura de Renato Russo feita por Fernando Carpaneda serve como boas-vindas do dono da casa.
Parelho a Renato Russo, também lá do alto do pop estrelato, um Jesus Cristo colorido está a piscar sua backlight para o visitante. A peça de Dani Morosini, que há pouco esteve em cartaz na Galeria Dulcina, pode abrir uma interessante leitura para o que está reunido nesta sala. Jesus conversa tanto com os mosaicos medievais quanto com a iconoclastia bem-humorada de camaradas como Nelson Leirner.
Outros diálogos com a história da arte – e com a história do homem – animam a Galeria Parangolé. Se a peça de Dani Morosini lembra um mosaico, perceba que logo ali perto um par de trabalhos de Gertrud Muller, artista alemã radicada em Brasília, recriam justamente essa ancestral linguagem – pedrinha por pedrinha.
Bené Fonteles, com sua Conversa de Botequim de Ogum com Exus, traz para o centro do ambiente outra forma de religiosidade. Essa mesma peça esteve instalada há pouco nos jardins de Karla Osório, no Lago Sul, dentro de uma retrospectiva do artista. Ali os orixás de Bené tagarelavam com a natureza ao redor, ao pé de uma árvore, estalando no calor do sol do cerrado. Agora, neste novo ambiente, a energia acumulada é de outra ordem.
Nelson Maravalhas talvez possa explicar um pouco dessa energia – presciente – porque o pintor comparece com falsa crônica de viagem, derivada daquelas incursões de artistas franceses à América do Sul. Bem diante de Maravalhas, na parede oposta, pedindo licencinha aos exus de Bené, o visitante pode ainda contar as chagas da escravidão que o tempo e a civilização não apagam, dentro de assemblages de Cíntia Falkenbach e Mario Jardim.
Formando um duplo com a Galeria Parangolé, desdobra-se a Galeria Rubem Valentim. Para essa segunda sala, ondeandaonda reservou um encontro de gerações que deixa bem evidente como transitam esses personagens do cenário brasiliense. Gê Orthof e Ralph Gehre estão ali. Assim como Miguel Simão e Sergio Rizo, ambos professores da Universidade de Brasília.
E também se encontram nesta sala os novos valores. Bia Leite, que dia desses se viu como pivô involuntária do infame caso Queermuseu, agora está em casa. Ao lado do amigo Ricardo Gauthama, com quem convive amiúde em espaços arejados como A Pilastra, um centro de resistência política e artística LGBT erguido no Setor de Oficinas do Guará. Pertinho dos dois está também Pamela Anderson, que neste exato momento participa ainda de O Tempo de Nossas Vidas, a mostra de temática queer em cartaz na Casa da Cultura da América Latina, no Setor de Diversões Sul.
Camila Soato, João Angelini, Matias Mesquita e Adriana Vignoli, nesse sentido, funcionam como uma geração que faz o meio de campo entre os mais experientes e os mais jovens. Os quatro são presença constante no cenário brasiliense, realizando mostras individuais também em outras capitais. E ondeandaonda apresenta artistas que ainda, digamos assim, nem foram formados oficialmente – os novíssimos talentos cursando o Instituto de Artes da Universidade de Brasília e a Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Como Nina Maia, Romulo Barros, Guinho Krieger.
Os artistas de vídeo, nessa mudança do Museu Nacional para a 508 Sul, acabaram sofrendo um bocado. Dentro da arquitetura da nova/velha casa, com suas paredes vazadas e suas amplas janelas, sua abundante luminosidade natural, os vídeos levaram a pior parte. Acabaram confinados num puxadinho lá na rabeira da Galeria Rubem Valentim.
Por outro lado, ambas as galerias da 508 contam com amplas vitrines que – escapando para fora do proverbial cubo branco de um espaço expositivo convencional – oferecem aos transeuntes da W3 Sul, aos pedestres e aos carros que passam, que param no eventual sinal vermelho, os estilhaços de arte contemporânea.
Wagner Barja reservou ambas as vitrines da casa para Gisel Carriconde Azevedo, artista e galerista que tem experiência com tal proposta. Afinal, a sua deCurators se oferece diariamente como uma vitrine para quem passa pela 412 Norte. Aqui na 508, duas artistas que recentemente estiveram na deCurators agora atravessam a W3. Ludmilla Alves reconta as memórias do cerrado em vestígios de árvores queimadas. Lis Marina Oliveira recria uma intervenção feita em frente ao Palácio do Jaburu.
E a maior intervenção que pode ser feita na W3 Sul, a valer, é o próprio Espaço Cultural Renato Russo. Que os artistas da cidade ligeiro tomem de volta o que é deles.