Mostra de Sergio Rizo expõe a desventura dos anjos caídos
Os desenhos do artista estão em cartaz na Caixa Cultural
atualizado
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Um tanto do processo criativo de Sergio Rizo está em descoberto na exposição Cadernos de Desenho. E não apenas como desvendar do domínio de uma técnica. Mas como forma de valorizar cada etapa do procedimento de um artista.
Em cartaz na Caixa Cultural até 20 de maio, a mostra tem curadoria de Oto Reifschneider e se aproveita do peculiar traçado das salas gêmeas Piccola 1 e 2 – duas galerias contíguas e espelhadas – para, primeiro lá e depois cá, acompanhar dois momentos da realização artística.
Na primeira sala, os exercícios de desenho em anatomia e modelo vivo que, ao longo de décadas de trabalho diário, apuraram o olhar e afinaram os dedos de Sergio Rizo. Na sala seguinte, a fantasia, o momento em que esses estudos ganham o lirismo, o naturalismo cede terreno para fantasia e o artista segue a trilha dos anjos caídos, um tema que ele persegue há alguns anos.
Sergio Rizo teve a gentileza de receber a coluna Plástica na Caixa Cultural, esta semana, para percorrer essa trilha. Visitando a própria mostra, pôde se valer de seu repertório de desenhos e de sua oratória de professor para falar sobre cada etapa de seu processo.
“Esta é uma exposição didática”, apresenta Rizo, bom anfitrião, abrindo a porta de vidro e apontando o caminho que, passando pela galeria principal da casa, leva às galerias Piccola. “O didatismo é uma necessidade que se impõe. Porque as pessoas se afastaram da arte, não se sentem mais ligadas a ela, não mais se reconhecem nela. Vivemos uma época bárbara. Mas a arte de choque, a arte de confronto, bem, isso já tem mais de cem anos, sabe? Isso vem desde aquele bode após a Primeira Guerra Mundial. Hoje, mais do que nunca, sou um humanista. Hoje é preciso sermos humanistas. Naquele bom e velho sentido do termo.”
Rizo entende a própria exposição, como concebida por Oto Reifschneider, como “a formação do artista”. Nestes desenhos apresentados na Piccola 1, percebemos a necessidade do apuro técnico, do treino do olhar e da memorização da anatomia. “A inconsistência prejudicaria o trabalho. Há um conhecimento absorvido que de forma natural chega ao gesto. Mas para isso acontecer naturalmente, isso leva toda uma vida.”
Leva toda uma vida, ele diz. Sérgio Rizo desenha desde os 11, 12 anos de idade. Naquela época, copiava as imagens do curso de anatomia da Escola Panamericana de Arte, que chegava por correspondência para sua família na 105 Sul. Também percorria com interesse a coleção Gênios da Pintura, comprada em bancas de jornal.
Mesmo com carreira ativa como pintor há mais de duas décadas, ele nunca parou de desenhar. Formou-se arquiteto pela Universidade de Brasília, na mesma época em que era aprendiz no ateliê de Glênio Bianchetti. Depois cumpriu mestrado em pintura no Pratt Institute de Nova York. Mais tarde, tornou-se professor do Instituto de Artes da UnB e, atualmente, dá aulas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da mesma instituição.
Na década de 2000, aproximou-se da anatomista Iolanda Galindo, professora da Faculdade de Medicina, e os dois promoveram juntos um disputado curso de Anatomia Artística cujas aulas eram alternadas: uma semana em laboratório, outra semana em ateliê.
De modo que aquelas aulas reproduziam o que Sergio Rizo tem como dinâmica artística ainda hoje. Pode-se entender a Piccola como uma reverberação desse mesmo labor. Num lado da sala, os trabalhos em anatomia – grafite, sanguínea ou carvão sobre papel. Aqui interessa a proporção exata, a minúcia de detalhes, a correção do escorço. Um exercício que ele nunca abandonou, nunca abandonará, segue e seguirá fazendo, para agilizar os traços.
No outro lado da sala, o chamado estudo de modelo vivo, os retratos de nu feminino. Com esses trabalhos, Rizo conta estar a perseguir o que chama de, emprestando um termo em italiano, morbidezza amorosa. Aqueles instantes de lassidão, de abandono. “O mais fácil seria explorar o erótico e se assentar nisso, mas sou um sessentão e hoje mais me interessa a inteireza psicológica da modelo. Não oriento posições para a modelo, não quero estetizar.”
Certos contornos estão apenas esboçados em tênues linhas de grafite. Outros detalhes, no entanto, estão mais precisos, com sombreamentos indicando volumes e texturas. Eventuais pinceladas em aquarela completam algumas das composições. Esse caráter de acabado/inacabado, mui próprio do desenho, fala um bocado a Sergio Rizo, mesmo quando ele tem a pintura como o destino final de seus projetos. Tratando do desenho como uma estética própria, ele pensa tanto no francês Edgar Degas, que enxerga como a ponte entre o clássico e moderno, quanto em Oscar Niemeyer, quando o arquiteto se dedicava a desenhar as curvas femininas.
E então passamos para a segunda parte da exposição, como quem abre um segundo caderno de desenho. Aquelas figuras que antes estavam soltas nas páginas começam a se encontrar – ganham contextos e narrativas. “Antes estávamos no campo da técnica, da observação e da memória. Aqui entramos no domínio da imaginação, da fantasia”, anuncia Sergio Rizo, cruzando a entrada da sala Piccola 2.
É um mundo de pura gestualidade, ele define. Os personagens, de quem Sergio Rizo já conheceu e apreendeu os rigores de anatomia, agora assumem novos aspectos e novas plásticas. Passam a se virar num mundo fantástico em que se combinam a máquinas voadoras, como aquelas pensadas por Leonardo Da Vinci no século XVI, e ambientes tanto biológicos quanto mecânicos, como em quadrinhos do francês Moebius.
Mas vale notar que ao contrário do cientificismo de Leonardo e ao contrário do detalhamento visual de Moebius, duas referências das quais Rizo não se afasta, ele faz questão de mostrar que aqui o interesse dele vem de sua experiência com a arte abstrata. “Quando desenho estas máquinas, o que me interessa são as direções, as pinceladas, os gestos que posso trazer para o papel. Elas são elementos puramente estéticos. As máquinas do Moebius, por mais alucinadas, têm altímetros, têm certo grau de realismo. Aqui estou preocupado apenas com a composição. Então percebo que preciso de uma curva, de um retângulo, de um asa, e trago isso para a composição. Essas formas têm a cadência da arte abstrata.”
Sergio Rizo gosta de ouvir jazz instrumental quando desenha. Charlie Parker, John Coltrane, Miles Davis. “Deixo o inconsciente fluir e não tenho medo do acidente.” Uma atitude que, para quem se formou em arquitetura e para quem se detém nas minúcias de anatomia, serve como um equilíbrio, reequilíbrio.
Um tema mui caro para esse tipo de gestual, para esse tipo de fluxo então é a saga dos anjos caídos, tema que chegou às pinturas de Sergio Rizo em meados da década passada, não sem antes ter passado pelo rol de seus interesses acadêmicos.
Rizo conta que, em 2004, apresentou uma tese na UnB sobre as representações dos corpos no além, após a morte, ou seja, no paraíso, no purgatório e no inferno. Concluiu em sua pesquisa que o inferno tem maior número de realizações plásticas. Primeiro, porque a Igreja Católica, em particular, usou um bocado de imagens de danação como forma de amedrontar seu rebanho através dos séculos. Segundo porque, como sugere o professor, “imagine as imagens do paraíso, passar a eternidade naquele jardim, isso vai enjoar logo, né?”.
De Hieronymus Bosch a Pieter Bruegel, muitos pintores deram sua versão para o tormento dos anjos rebeldes, expulsos do paraíso. E aqui Sergio Rizo apresenta seus mapas mentais, em que junta referências à história da arte (de Santo Agostinho a Gaston Bachelard) e o interesse em arquitetura e urbanismo para erguer, à sua maneira, uma Cidade dos Anjos.
Esta cidade dos anjos, inspirada na tradição gnóstica, é uma construção vertical erguida em vários níveis. Os anjos podem tentar retornar à sua origem, galgando cada um desses patamares. Para tanto, precisam recuperar as memórias, perdidas com a queda.
“Os anjos caídos somos nós”, acredita Sérgio Rizo. “Já estamos no inferno por sermos matéria. Isto tudo aqui é inferno. Nossa busca agora é por reintegrar o cosmos.”