Milton Marques e a arte de escorrer areia ao revés
O trabalho do artista gira em torno de traquitanas eletro-eletrônicas que ele desmonta e faz funcionar de outro jeito
atualizado
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Ao descer as escadas da Alfinete Galeria, o prezado visitante custa um bocadinho para entender o que está se passando. Na parede ao fundo da sala, uma projeção domina o ambiente. Na imagem azulada, um crânio pontiagudo a girar num círculo infinito.
Enquanto a imagem não se desvenda por si só, no mesmo tempo em que aquele movimento não se resolve, podemos aos poucos tomar consciência do que estamos vendo. Desviando os olhos da parede para o chão da sala, ali próximo ao projetor, notamos que uma pequena parafernália guarda as chaves para esta obra de Milton Marques.
Projetada na parede, a areia empresta uma textura indefinível à imagem e se lança numa espiral hipnótica. Uma vertigem. Um sonho. À medida que o crânio vai se desenterrando e enterrando, se revelando e se escondendo continuamente, percebemos que a areia escorre para o alto da imagem, escorre de maneira impossível e inexplicável rumo ao teto da sala.
“Nós tendemos a pensar sempre em começos e fins, mas este vídeo não habita muito bem essas ideias, né?”, comenta Milton Marques, sentado no fundo da sala, conversando sem tirar os olhos do próprio trabalho. “O que a gente tem aqui é a suspensão de uma situação. Temos o agora. A ideia do movimento está muito ligada a isso. Traz a sensação de estar aqui, estar no momento presente.”
Milton conta que, na noite de abertura, há um par de semanas, muita gente ficou olhando para a projeção pensando se tratar de uma gravação editada. De fato, o giro constante da imagem faz pensar numa edição em loop – e bem se poderia tentar encontrar o ponto de corte.
Mas não, não há corte algum ou montagem. Apenas estamos vendo, em escala ampliada, o que no mesmo momento acontece ali no cantinho do chão.
“Ao mesmo tempo que as coisas se perdem, elas se reiniciam continuamente. Nutro certo fascínio por essas questões cabais: a vida, a morte e as relações que temos com essas ideias no nosso dia a dia.”, prossegue Milton Marques, ainda sem tirar os olhos do vídeo. “ Até pouco tempo atrás, estava me surpreendendo muito com a qualidade dos sonhos que eu tinha. Todos relacionados com a morte. Mas, imagine você, perceber a morte não como um fim, apenas como esta mesma sensação que temos aqui com este vídeo. A sensação de não transição, de não existir nada depois… É uma pena que ultimamente já não me recordo tão nitidamente dos sonhos ao acordar.”
O vídeo tem exercido papel fundamental nas histórias que Milton Marques quer contar. Seu trabalho vem girando há anos em torno de traquitanas eletro-eletrônicas que ele desmonta e faz funcionar novamente de um outro jeito. Sua exposição anterior na Alfinete, em 2013, trazia objetos cinéticos feitos a partir de antigos aparelhos de DVD e de CD players, a partir de peças como aquele miniventilador interno (cooler) comum em computadores.
Esta impressora de escritório surgiu nesse mesmo processo. Milton encontrou nela uma máquina na qual é possível desenvolver diversos trabalhos. Este mesmo objeto já servira de suporte e de motor para obras realizadas em Berlim, no Rio de Janeiro e na cidade de Vitória, Espírito Santo.
Desta feita, Milton Marques ganha em dramaticidade com o empréstimo do crânio de urubu. Uma ossada que o artista guardou paciente e zelosamente durante quase vinte anos, na certeza de que, um dia, precisaria dela.
No final da década de 1990, Milton morava na zona rural de Planaltina, onde diversas granjas se dedicavam à produção de ovos de galinha. Ora, os urubus iam lá e furavam os ovos para se alimentar. Então os granjeiros envenenavam os urubus. Certa tarde, andando de bicicleta no cerrado, Milton encontrou uma pilha de esqueletos, restos mortais de centenas de aves. A carne havia se decomposto, restavam os ossos esturricados pelo sol e vestígios de penas.
No vídeo acima, Milton Marques registrou a primeira encarnação de sua impressora transformada em mecanismo para a arte contemporânea. Era o ano de 2006 e ele já fazia testes com areia em vidro. Buscando reconfigurar a ideia da ampulheta como marcação de tempo — neste caso, indefinido, interminável, infinito.
Ao final do vídeo, há ainda o registro de uma experiência em Berlim, no ano de 2007. Ali uma reprodução de um retrato feito pelo espanhol Francisco de Goya é enterrada e desenterrada pela areia. De certa forma, Milton estava a se medir contra a tradição das artes plásticas — e contra a sua própria formação como artista, que ele foi formado na pintura e não na vídeo-arte.
Nesta segunda encarnação da mesma maquininha de vídeos, o aspecto geral do objeto já se vê muito próximo àquele que hoje se apresenta na Alfinete. A diferença mais significativa: neste trabalho de 2014, apresentado no Museu Vale, de Vitória, a câmera filma a cena de lado. Como resultado, uma imagem em forma de paisagem e horizonte.
Neste trabalho e no anterior, uma frase foi escrita no vidro, trazendo outra camada de informação às obras. Para esta versão atual na Alfinete, Milton concluiu que tal expediente seria excessiva. Ele não quis dar nenhuma frase, palavra ou fragmento de ideia, nem mesmo um título, para não diminuir ou contaminar todo o campo de sentidos e significados no qual o espectador está livre para se espalhar.
Uma terceira encarnação do projeto foi apresentada no Rio de Janeiro, em 2015. No vídeo acima, Milton Marques reuniu alguns exercícios e ensaios que antecederam aquela ocasião.
A convite da mostra “Visualismo”, ele projetou o trabalho em escala arquitetônica, ocupando a fachada do Edifício Joseph Gire (antiga sede do jornal “A Noite”), na praça Mauá. Com a câmera na mão, a performance ao vivo de Milton foi acompanhada pelo também artista visual Oziel improvisando um som na guitarra elétrica.
(A notar que, em todas essas obras, a areia se move como se imagina que uma areia se mova. Escorrendo para baixo. Milton Marques agora fez a areia escorrer para cima, bastou ele apertar um botãozinho no projetor, invertendo a imagem captada pela câmera.)