Bia Leite mostra coragem na sua primeira mostra individual em Brasília
“Impressões Noturnas” ocupa a Galeria Alfinete. A artistas brasiliense teve obras expostas na polêmica “Queermuseu”
atualizado
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Bia Leite, de repente, se viu metida numa situação absurda. Ao lado de nomes tarimbados das artes nacionais, como Lygia Clarke e Adriana Varejão, lá estava a jovem de 27 anos de idade como uma das artistas perseguidas, difamadas e embargadas dentro da mostra “Queermuseu”, arbitrariamente fechada pelo Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre, no último mês setembro.
De lá para cá, Bia Leite sentiu-se obrigada a aparecer na mídia bem mais do que gostaria. Dona de jeito tímido e voz macia, a artista brasiliense precisou verbalizar em seguidas entrevistas – e até deixar por escrito em redes sociais – suas convicções sobre arte e política. Metida por força maior num combate que não criou para si, Bia também não vai se afastar dele um milímetro.Neste exato momento, na Alfinete Galeria, Bia Leite está a apresentar a melhor defesa que poderia fazer de seu trabalho e de suas intenções. “Impressões Noturnas” é a primeira mostra individual da artista na cidade que escolheu para si. Nascida no Ceará, formou-se no ano passado pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília.
Antes mesmo de se formar artista plástica, Bia começara a se fazer perceber, lentamente despontando no cenário brasiliense das artes. Ela já estava no radar do galerista Dalton Camargos quando a Alfinete abriu seu atual endereço, na comercial da 103 Norte, em janeiro de 2016 com uma coletiva de autores da cidade – Élder Rocha, Camila Soato, Leopoldo Wolf e Bia Leite, entre outros.
E uma mostra individual de Bia já estava no calendário da Alfinete para este mês de dezembro bem antes de o Caso Santander marcar de forma decisiva o panorama da cultura brasileira.
Dentro da Alfinete, podemos encontrar Bia Leite em sua intimidade. Para esta mostra, por ideia de Dalton Camargos, ela se fez acompanhar por Andréa Campos de Sá, a Capi. Artista plástica e professora da UnB, pessoa bem próxima de Bia nos últimos anos, Capi trabalhou com curadora em “Impressões Noturnas”.
Bia tinha sido monitora de Capi no ateliê de gravura da UnB e boa parte da produção que temos aqui na Alfinete passou ali pelo trabalho diário na universidade. Porque a ideia da curadoria era poder mostrar, já neste momento, as várias linguagens que Bia vem desenvolvendo ao mesmo tempo.
Entraram, portanto, uma série de linoleogravuras e um trio de monotipias, todas feitas ali na UnB com material dos mais prosaicos. Bia transformando em suporte para as impressões – e também usando como inspiração – os jornais velhos, algo amarelados, que se empilhavam no ateliê para serem usados para limpar instrumentos e conter sujeiras.
Nos cadernos de esporte, Bia encontrou fotografias de lutadores de MMA. Esse imaginário tão masculino, tão viril e virulento, pareceu apropriado para a artista repetir o gesto que vem desenvolvendo no seu trabalho: interferir em imagens alheias para levá-las para outros contextos, fazendo com que elas ganhem outros significados.
Esse exercício artístico vale para o MMA. Vale também para os filmes de terror. E vale muito para as infinitudes de imagens que estão na internet, ao alcance de um clique, à mercê de serem manipuladas e multiplicadas.
Para formar o vídeo “Screenpaint44”, exibido em looping na parede ao fundo da Alfinete, Bia Leite juntou num único arquivo 44 imagens digitais apropriadas da internet e modificadas por softwares de desenho e pintura dos mais elementares. Surgido a partir de uma atividade prática nas aulas de ateliê da professora Karina Dias, o trabalho de Bia aqui funciona de forma semelhante às suas impressões em jornal.
Nos trabalhos feitos em jornal, podemos facilmente perceber sua origem primeira através da diagramação das páginas e dos elementos que permanecem claros mesmo após as intervenções da artista, como datas e legendas. Do mesmo jeito, os trabalhos feitos a partir da internet muitas vezes ainda exibem traços do seu meio original, como lay out das páginas, caixas de diálogos e barras de ferramentas de navegação.
“Essas são todas imagens que estão no mundo”, explica Bia Leite. “Meu trabalho é pegar algo que está restrito a um contexto e colocá-lo em outros circuitos. Faço um trabalho de apropriação que, dentro da história da arte, não seria muito diferente de uma colagem.”
Mesmo nas pinturas, em que esse aspecto de colagem pode ficar menos evidente, Bia Leite trabalha a apropriação de imagens na intenção de, reordenando-as, atingir outros significados. Única pintura ora em cartaz na Alfinete, o recente tríptico “Sonho Um” foi finalizado justamente para esta exposição.
As três telas trazem uma imagem de salsichas tirada do Instagram de um amigo que Bia já nem se lembra exatamente quem, uma cena um tanto obscura de um filme de terror igualmente obscuro e, cá embaixo, o detalhe de um travesseiro tirado de desenho animado d’Os Simpsons.
“Cada uma dessas três telas eu pintei em separado, algumas vezes com a imagem original sendo projetada e eu pintando em cima da projeção. Foi o que aconteceu na hora de fazer esse travesseiro. Depois vi que estava fora do lugar, não daria para completar a composição e então tive de refazer. Mas achei interessante deixar esse errinho”, diz Bia, rindo dos acasos que ela permite prosperarem.
“Esse travesseiro assim parece se referir a diferentes estágios de sono, né? Mas isso não foi intencional. Na hora de combinar as cores e as formas, achei que havia um equilíbrio nessas três telas, e isso sim foi intencional. O erro não foi intencional. É algo que eu deixo acontecer na hora e só depois fico pensando sobre aquilo.”
Foi justamente essa poética de trabalhar com imagens anteriores em novas chaves de significado que levou Bia Leite a participar da exposição “Queermuseu”. O curador Gaudêncio Fidelis selecionou a obra “Travesti da Lambada e Deusa das Águas”, pintada em 2013.
Bia se inspirou na página de Tumblr “Criança Viada” (http://criancaviada.tumblr.com), para a qual pessoas mandavam imagens antigas de infância, num ambiente de camaradagem e intimidade, compartilhando com bom humor algumas experiências nem tão divertidas de seu passado. Basicamente, o que fez Bia Leite foi transformar o que era motivo bullying e chacota em pequenas celebrações de auto-estima e auto-aceitação.
“Essa série já tinha sido exposta uma vez antes de ir para o ‘Queermuseu’. O retorno que eu recebia era sempre bom. Muita gente se sentia representada”, recorda a artista. “E o que aconteceu depois, com o fechamento da exposição, pode nos surpreender, mas faz todo sentido, é algo compreensível dentro do que acontece politicamente no país. De lá para cá, o Gaudêncio vem falando bastante, eu também, estamos discutindo todos os dias sobre arte, e isso é positivo. Muita gente veio falar comigo e me apoiar, o que também é positivo.”
Gaudêncio Fidelis, quando esteve em Brasília para participar de uma conversa sobre a “Queermuseu” na UnB, usou a palavra “coragem” para se referir a Bia Leite. Coragem por fazer o trabalho que faz. Ao saber das palavras de Gaudêncio, Bia sorri em concordância.
“Acho que sim. Acho que sou corajosa. Acho que ser LGBT e viver o que você quer viver, no Brasil, já é por si só uma coisa bem corajosa. Com tanta gente dizendo para você não fazer, para você não ser… É preciso coragem.”