A trama de uma exposição e seus fios invisíveis
Sob curadoria do gaúcho Márcio Tavares, mostra “Os Fios e a Trama” faz recorte geracional a partir do acervo da Referência Galeria de Arte
atualizado
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Com mais de 20 anos de atividades em Brasília, a Referência Galeria de Arte chamou o curador Márcio Tavares para dar uma arejada no acervo. Sob o olhar do profissional, está de pé na loja da 202 Norte a mostra “Os Fios e a Trama” até três de março.
Artistas caros à marchand Onice Moraes e recorrentes à Referência, como Galeno e Gê Orthof, ressurgem com suas peças embrenhadas por Márcio Tavares numa narrativa que perpassa diferentes materiais e gerações.
Aliás, foi justamente durante os preparativos para a Bienal do Mercosul de 2015 que Tavares e Onice estreitaram as ligações, com a participação tanto de Gê quanto de Galeno na mostra internacional. De modo que para Onice foi natural chamar Tavares para trabalhar em “Os Fios e a Trama” assim que soube que ele se mudara para Brasília.
Márcio Tavares está a tratar de dois tipos de fios e de tramas nesta mostra. O primeiro tipo é evidente e se revela na materialidade de cada peça. O segundo tipo está de certa forma subentendido em todas as mostras bem montadas, revelando-se numa linha invisível que liga uma obra à outra obra, um autor a outro autor, formando um tecido de referências e interferências.
De tal forma que Iole de Freitas, artista mineira dedicada a materiais como aço e cobre, abre e fecha esta visitação com um par de suas esculturas de parede. A primeira delas foi afixada na sala térrea da Referência. A outra está nos fundos da sala debaixo, revelando-se apenas após termos descido as escadas e termos cruzado todo o outro andar, cruzado toda a exposição.
Iole chega a trabalhar com instalações em larga escala, mas mesmo estas peças menores trazem latente a poética da artista. Suas telas metálicas se sobrepõem e desfolham, criando diferentes volumes e situações numa mesma peça. A ideia de trama, perseguida pela narrativa proposta por Tavares, já está presente aqui de forma quase literal.
Ali ao lado de Iole de Freitas, a paulista Leda Catunda parece atacar a pintura num procedimento de índole semelhante. “Montanha com Neve” é exatamente isso que seu nome sugere, mas repare que aqui o relevo montanhoso, mais do que simplesmente pintado, foi escavado na superfície da tela, com a artista revelando as camadas de lona e a estrutura física de seu material.
Esse mesmo gesto de sobrepor camadas e camadas, seguindo o fio que corre a mostra, pode levar também a uma pintura de Carlos Vergara. Nesta tela da série “Telhados”, o artista carioca se reporta ao processo de monotipia recorrente a seus últimos trabalhos. Porém, neste caso específico, a textura de telhas está impressa na tela através de uma plotagem.
Essa minúcia de texturas e camadas também se revela fundamental para o trabalho do mineiro Fernando Lucchesi — tanto em suas pinturas quanto em seus objetos de metal. Nesta mostra da Referência, temos uma peça de cada uma dessas linguagens a pontuarem a exibição.
Lucchesi viveu e montou ateliê por alguns anos em Ouro Preto. Uma experiência pessoal e profissional que parece ter sido de fato transformadora. Percebe-se nessa fração de sua obra, de toda forma contemporânea, a herança do barroco mineiro no que esse tem de ornamento e transbordamento formal, mas também no que tem de liturgia e de busca espiritual.
Nesse aspecto, é especialmente curioso contrastar a (boa) vizinhança entre a pintura de Fernando Lucchesi e “As Estrelinhas” de Athos Bulcão. Devidamente celebrado pela passagem de seu centenário, nosso popstar candango ganha neste momento uma mostra retrospectiva de fôlego no Centro Cultural Banco do Brasil.
Mas sobrou um pedacinho do camarada aqui também. “As Estrelinhas” pulsam em ondas cromáticas de imediato apelo visual. E se derramam em breves pinceladas que se adivinham ligeiras, mas escondem um cálculo, um engenho. Curioso como essa pintura pode emprestar um outro olhar — um segundo pensamento — para o espectador que, após conhecê-la, retorne ao rigor formal e à exatidão geométrica dos nossos tão conhecidos azulejos de Athos Bulcão.
E aqui pertinho do carioca Athos Bulcão (1918-2008), atravessando a sala, reencontramos outro dos pais fundadores da arte de Brasília. O baiano Rubem Valentim (1922-1991) segue ao mesmo tempo perfeitamente familiar ao entusiasta brasilense das artes visuais e absolutamente alienígena a tudo que está ao seu redor.
Sob as sincréticas bênçãos de Athos Bulcão e Rubem Valentim, Márcio Tavares se sentiu à vontade para se deter na arte produzida por brasilienses atualmente. É aqui que entra, portanto, o já citado Gê Orthof. E ali mais adiante vamos ter Ralph Gehre, alguém que foi muito próximo de Athos.
Interessante notar, neste momento, os trabalhos inéditos de Adriana Vignoli. Mais conhecida por suas instalações e por obras que de certa forma conversam com a arquitetura, desta feita ela apresenta uma produção inédita, peças recentes que funcionam como esculturas de parede e levam as mesmas questões de espaço, tempo e materialidade para uma escala intimista. Adriana, aliás, está agendada para uma individual na Referência ainda este ano.
Raquel Nava, que passou pelo antigo endereço da Referência na Babilônia Norte, aparece agora nesta nova casa. Entre suas peças inéditas, que mantêm sua espirituosa ironia e seu interesse complementar pela taxidermia e pelos produtos industrializados, ela monta um pequenino parque dos dinossauros, aberto ao rés do chão.
Christus Nóbrega, David Almeida, João Angelini, Patrícia Bagniewski, Pedro Gandra, Rodrigo de Almeida Cruz e Virgílio Neto são os demais brasilienses envolvidos em “Os Fios e a Trama”.