A trajetória de Bené Fonteles entre o visível e o invisível
Exposição Antologia Poética faz retrospectiva da obra do artista paraense na galeria de Karla Osório, no Setor de Mansões Dom Bosco
atualizado
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Como não sabe desenhar nem pintar, Bené Fonteles se apropria dos mais diversos materiais para constituir seu corpo de trabalho. Emprestando significados muito pessoais a objetos, aparentemente, triviais.
A linha que traça em sua obra tem a ver com o tempo e a memória. Visitar a exposição Bené Fonteles – Antologia Poética, que Karla Osório abre na tarde deste sábado (24/3) em sua galeria no Setor de Mansões Dom Bosco, equivale a espiar um tanto da vida do artista.A exposição, nascida com caráter de retrospectiva, dá conta de um punhado de interesses do artista nas últimas duas décadas e reúne obras feitas nesse período. Apresenta ainda peças inéditas que, de uma forma ou de outra, também se encaixam nessa poética.
A pedido da coluna Plástica, Bené Fonteles nos recebeu na véspera da abertura. Ele teve a gentileza de descer uma vez mais a ladeira da memória. Desse feito, parando aqui e ali, detendo-se um bocadinho ao longo de nossa visita, compartilhou alguns aspectos mui caros à sua formação.
Bené Fonteles conta ter encontrado em Rubem Valentim (1922-1991) uma espécie de segundo pai. Os dois artistas se conheceram dentro da Bienal de São Paulo, em 1977. Valentim apresentava Templo de Oxalá, uma de suas obras mais emblemáticas. Bené, aos 20 e poucos anos, entrava com força no mundo das artes nacionais, introduzido pelo historiador e crítico de arte Walter Zanini.
Nascido no interior do Pará e criado no Ceará, Bené Fonteles viria a morar em Brasília no ano seguinte, 1978. Aqui, estreitaria a amizade com Valentim, baiano que já estava na nova capital desde a década de 1960. Quando o amigo morreu, Bené assumiu sua herança – cuidando, ainda hoje, de seu legado. Ele já publicou um livro sobre sua obra e está, no momento, trabalhando em outro volume, que planeja como definitivo.
Toda uma série de obras, que ocupa uma da salas da retrospectiva, Bené ergueu sobre telas deixadas em branco, novinhas, por Valentim, que morreu sem nunca tê-las tocado com o pincel. Décadas mais tarde, elas receberiam camadas e camadas de cor, algumas intervenções e uns tantos novos significados.
Como esse azul muito intenso de um sari indiano, tecido que Bené comprou em viagem e deu para filha – mas, depois, pediu de volta por lhe fazer lembrar da cor preferida do francês Yves Klein. Para tratar do feminino, o artista concilia o azul com colares feitos por índias do Xingu. Na peça mais recente da série, criada semana passada na própria galeria, a tela foi trespassada por um punhal para riscar o Poema para Marielle Franco.
Bené Fonteles aprendeu com Rubem Valentim um bocado sobre a mitopoética da religiosidade afro-brasileira. Esse tema, tão caro a Valentim, ressurge com frequência na obra de Bené ao longo desta visita. Nos jardins da casa de Karla Osório, debaixo de uma árvore, sob a mais espessa sombra mesmo ao sol de meio-dia, um conjunto de mesa e cadeiras e metal se revela algo muito além do natural…
Eis a Conversa de Ogum com os Exus, uma instalação montada pela primeira vez em 2011. “A ideia é que o Ogum está aqui sentado e está conversando com os demais”, explica Bené, se aproximando de uma das quatro cadeiras de metal. “No candomblé, Ogum é o primeiro a chegar porque ele acalma a todos, ele comanda os egos de quem participa da cerimônia, no terreiro, e também os egos dos Exus.”
Sobre a mesa de metal, as ferramentas de orixás demarcam o lugar de Ogum e os lugares dos Exús. Essas ferramentas, explica Bené, eram chamadas por Valentim de “logotipos poéticos dos orixás”. As ferramentas são usadas para marcar as oferendas.
As demais peças, Bené Fonteles vem juntando episodicamente. A mesa passou dezoito anos no ponto de táxi da 210 Norte, onde ele morou. Os efeitos de quase duas décadas de jogo de dominó e pouco cuidado se fazem notar no aspecto maltratado do móvel. Parece uma chapa de gravura em metal, elogia Bené, encantado. A partir dessa mesa, Bené buscou cadeiras que lhe fossem condizentes.
Uma delas veio de um bar à beira do Rio São Francisco. Outra, da Paraíba, como presente da mãe do artista José Rufino. Uma terceira, resgatada de fogueira numa fazenda em Cristalina, interior de Goiás. E a mais recente, adquirida junto ao vendedor de água de coco que faz ponto próximo à rampa do Museu Nacional Honestino Guimarães.
Ferramentas semelhantes, ferramentas de orixás, marcam um dos sudários que Bené Fonteles apresenta nesta retrospectiva. Ogum-Oxóssi (2003/2004), aliás, é uma peça que funciona como um catalisador poético. Como se diversos interesses e materiais que Bené vem trabalhando ao longo da carreira ali enfim se encontrassem para compor uma única peça.
Sudários, esse nome, sendo uma referência evidente àquele sudário bíblico. Mas aqui se trata de autorretrato do artista. Nesta peça em específico, o tecido no qual é feita a composição é o de um antigo tapete de chão que, de fato, esteve na casa de Bené por bom tempo, pelo menos o suficiente para adquirir uma carga de significados. “Não foi um tapetinho que eu comprei no mercado, escolhi este tapete porque tem a minha vida aqui.”
Sobre o tapete, Bené Fonteles deitou-se ainda uma última vez – para marcar seu sudário – teve então delineado o contorno de seu corpo, riscado em grafite no tecido. O interior dessa marca foi preenchido por rolos de algodão feitos em Unaí, Minas Gerais, e por fios de pavio de lamparina, de Campina Grande, Paraíba. Esses fios foram ainda manchados de azeite de dendê da Bahia. (E uma mancha de azeite de dendê, pode crer, vai ficar para sempre.)
Esses mesmos algodões de Unaí já tinham aparecido, nesta visita, em algumas das obras feitas sobre as telas de Rubem Valentim. Assim como os pavios de lamparina. As ferramentas de orixás, que estão neste sudário, também estão na instalação sob a árvore, também numa das esculturas de parede na área externa da galeria. Como Yves Klein, Paul Klee, Kazimir Malevich e como Valentim, como alguns de seus artistas preferidos, Bené Fonteles está a construir uma linguagem de sinais, uma gramática.
Nessa construção, nessa fabulação, já foi dito, entra também um grau de apropriação. Sérvulo Esmeraldo (1929-2017), escultor cearense, mantinha em sua obra um grau de rigor geométrico e uma inclinação ao construtivismo que podem parecer distantes do trabalho de Bené Fonteles em uma primeira impressão.
No entanto, o ritmo branco e azul que Bené fez surgir nas telas que herdou de Rubem Valentim já podem dar o tom de um interesse que ali adiante, seguindo essa visitação, se desdobrará – literalmente – em uma peça de madeira sobre a qual o artista esparrama pequenos objetos tridimensionais de Esmeraldo. Um cubo de metal se torna, sob a perspectiva de Bené, um desenho com ponto de fuga. E uma pirâmide se transfigura em triângulos chapados.
Compondo a peça, arames enferrujados, um material nobre para Bené Fonteles, e um par de ovos de madeira, muito usados pelas tecelãs de Santa Catarina para cozer meias. O carpinteiro que trabalhou o material, por acidente, riscou uma das chapas. Bené aproveitou o risco, não reclamou, assumiu como expressiva a colaboração nada intencional.
Essa peça, apropriadamente batizada Com Sérvulo, podia ser vista até há pouco na ManOObra Galeria, de Sobradinho, criada e mantida pelo artista plástico José Ivacy. Para participar do projeto BSB Plano das Artes, que agitou a cena brasiliense no início do mês, Ivacy montou ali uma mostra afetiva chamada justamente arTEafeto.
Com a mesma desenvoltura em que cobre a distância entre a ManOObra Galeria, no setor habitacional Contagem, em Sobradinho, e a galeria de Karla Osório, no Setor de Mansões Dom Bosco, no Lago Sul, Bené Fonteles criou uma poética de promover encontros geograficamente improváveis, impossíveis.
Uma de suas esculturas de parede montadas para esta retrospectiva traz signos de duas terras muito próximas a ele. A obra conta com chifres de búfalos, aqueles animais que vivem na Ilha de Marajó, no Pará. E conta com pequenas grades de ferro que marcam o passo dos visitantes, entre as calçadas e a grama do Parque Trianon, um raro quarteirão verde na Avenida Paulista, no coração cinzento de São Paulo.
Búfalos não pastam no Trianon. E essa obra, não por acaso, pertence a uma série chamada Desenhar com a Matéria. “Não sou pintor e nem desenhista, então desenho com matéria”, explica Bené Fonteles, 65 anos de idade completados esta semana, justamente a semana em que passou montando esta mostra retrospectiva. “O meu trabalho é de apropriações e afetividades, criando conexões de lugares e memórias.”
Apropriando-se de um termo lapidado pelo artista Tunga, que dizia não fazer instalações e sim “instaurações”, Bené conta que assim está correto – o que ele faz então são “pequenas instaurações”.
Uma das figuras recorrentes na obra de Bené Fonteles é um calango de metal. Uma memória de infância. O calango que via descendo pela parede da casa de taipa na qual morou em Acaraú, no interior do Ceará, entre o sertão e o mar. Bené viveu apenas três anos naquela casa, quando ainda era criança, mas se lembrará dos calangos para sempre.
Estudando a cultura dos povos aborígenes, anos mais tarde, Bené Fonteles aprendeu que o calango é considerado por eles como um animal xamânico. Cetros são esculpidos com o formato do rosto de um calango como forma de demonstração de poder. Acredita-se que o bicho tem o dom de unir o visível ao invisível.