A tarefa obscura de Eduardo Belga
Artista estuda gravura em Portugal. Em recente passagem por Brasília, lançou trabalho inédito em quadrinhos
atualizado
Compartilhar notícia
Eduardo Belga está passando temporada em Portugal. Há um ano, entrou na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Vem estudando gravura – dentro de uma tradição europeia – e tem mais dois anos pela frente.
Esteve de volta a Brasília, há um par de semanas, para concluir e já lançar um trabalho inédito em quadrinhos. Para tanto, cumpriu residência no Cosmos Criativo, 714 Norte, a convite do quadrinista Gabriel Góes, seu amigo desde a Universidade de Brasília.
A revistinha Sobre o Prazer de Destruir pode ser comprada na loja da Cosmos por R$ 15. Ela vem sendo tratada por Belga como um fanzine. Como tal foi concebida: capa e contracapa em papel craft, páginas internas em papel sulfite amarelo, impressão em tinta preta.
“Este é um trabalho para ser perecível, provisório e precário. Não tem o apelo durável da arte”, explica o autor, com a obra em mãos, ao receber a coluna Plástica no Cosmos.
Nesse encontro, início de fevereiro, Belga contou sobre seu interesse pelos quadrinhos, que vem desde a adolescência, e também sobre a relativamente recente descoberta da gravura – aventura que o levou à cidade do Porto para um doutorado prático-teórico que alimenta sua produção artística atual, caso do fanzine aqui presente.
Sobre o Prazer de Destruir foi engendrado enquanto Eduardo Belga deixa de pé sua tese de doutorado, provisoriamente intitulada A Tarefa Obscura do Gravador. Ambos, a revistinha já concluída e o trabalho teórico agora em desenvolvimento, partem de seu interesse pelo sofrimento.
De que maneira o sofrimento, seja melancolia, sejam limitações físicas, afeta diretamente a obra de um artista? Belga vem estudando dois casos de vulto para dar conta dessa pergunta: o espanhol Francisco de Goya (1746-1828), pintor e gravador, e o inglês Tony Iommi (1948), guitarrista da banda Black Sabbath.
Goya teve uma doença no ouvido, afetando o labirinto, lembra Eduardo Belga, que o deixou na cama por cerca de um ano. “Antes disso, fazia o trabalho de um pintor oficial. Com a doença, se recolheu e começou a série dos Caprichos, em gravura. Mais no fim da vida, vieram as pinturas negras, que interpreto como um fruto da gravura. Ao contrário do trabalho como pintor da corte, na gravura ele desenhava diretamente da cabeça dele, numa ligação com o inconsciente. Isso é o que me interessa. Ele precisou da doença para perder as papas na língua e passar a criticar a sociedade e a monarquia.”
Anos antes de formar o Black Sabbath e se tornar um dos criadores da estética lenta e pesada que derivaria no chamado heavy metal, Tony Iommi sofreu um acidente e perdeu as pontas dos dedos médio e indicador da mão direita. Para retomar a música, inspirou-se no virtuoso violonista belga Django Reinhardt, que tinha apenas dois dedos na mão esquerda. “Iommi arrumou próteses para os dedos e precisou adaptar a guitarra. Passou a utilizar cordas de banjo, mais flexíveis. Mudou a afinação do instrumento, deixando as cordas mais soltas, assim poderia manusear melhor. Acabou criando uma sonoridade particular.”
Eduardo Belga lembra de quando era adolescente, catorze, quinze anos de idade em meados da década de 1990, e saía do Leonardo Da Vinci, no início da Asa Sul, para chegar ligeiro à casa da família, em Sobradinho, movido pelo absoluto desejo de ouvir seus CDs do Black Sabbath.
Já estava ligado em quadrinhos. Não gostava de ouvir música no ônibus, receando que atraísse ladrões com seu walkman. Mais seguro ler as revistas da série Hellblazer, viajar com John Constantine, o personagem criado por Alan Moore, Stephen Bissette e John Tobleton. Também estava atento, na época, ao trabalho do artista suíço H. R. Giger. Pouco depois, conheceria a obra do desenhista e escritor Lourenço Mutarelli, através do álbum Sequelas (1998).
Belga, no entanto, só tomou um contato consciente com a gravura, o atual objeto principal de seu doutorado, quando teve aulas com Cintia Falkenbach no Instituto de Artes da UnB. E o aprendiz se tornaria professor anos mais tarde ao assumir a cadeira de calcogravura.
“Recebemos, como desenhistas, muita influência muda da gravura. Obras que nem sabemos que são gravuras”, ele percebe. “A gravura oferece muito, mas pode ser uma mãe rigorosa. Uma mãe difícil de amar. Diante das tecnologias atuais de reprodução e das possibilidades da arte, você questiona o tempo inteiro: por que fazer desse jeito bruto, mecânico, tóxico? Você faz coisas que não sabe exatamente como vão ficar. Apenas com repetição, muita repetição, consegue prever um pouco do resultado final. E passa a aceitar o que há de selvagem.”
Eduardo Belga, nessa temporada portuguesa, deixou de lado os compromissos de professor para voltar a ser aluno. Tem trabalhado no ateliê da gravadora, e sua orientadora no doutorado, Joana Paradinha.
Como parte prática do doutorado, Belga vem tocando uma obra de fôlego, em desenhos e gravuras, que pretende chamar de Liturgia da Morte Voluntária. É dela que agora se desprende Sobre o Prazer de Destruir. Pode ser entendido como um capítulo que tomou vida própria na forma de fanzine.
Sobre o Prazer de Destruir foi finalizado no início de fevereiro para atender a uma encomenda do amigo brasiliense André Valente, que trabalha em Angoulême, na França. A história integrará uma coletânea francesa reunindo o olhar de de quadrinistas brasileiros sobre o atual momento político do país.
Para abordar o momento político brasileiro, no entanto, Eduardo Belga toma o caminho mais comprido. Lembra o próprio passado, expõe traumas, encontra um impulso de violência na infância. E então busca um entendimento bem maior, mais amplo, que chega à constituição do Brasil como nação.
“Quando eu morava em Sobradinho e vinha estudar em Brasília, passei a entender o que é periferia. Da mesma maneira, agora morando em Portugal, passei a entender melhor o que é uma ex-colônia e como ainda há ecos desse passado. Como a própria Brasília é a repetição de uma seleção de pessoas para emigrarem, como isso rende uma brutalidade, uma expectativa de violência e a eleição de um líder que também representa essa violência.”
Eduardo Belga não se vê como um autor de arte política. O terror de hoje amanhã já será outro, ele diz. Portanto, como artista, interessa para ele ir além da crônica de seus dias. E nisso enxerga Sobre o Prazer de Destruir como um “proto-manifesto” em que busca entender o grotesco que o atravessa desde aquele tempo em que lia quadrinhos no ônibus de volta para casa – e que permanece ainda hoje dentro de seu trabalho.