1964 e depois: arte política no Museu Nacional
“Não Matarás” traz peças e obras de artistas brasilienses e brasileiros sobre a ditadura militar
atualizado
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Não muito longe do Congresso Nacional, numa linha reta de asfalto chamada Eixo Monumental, encontramos o Museu Nacional Honestino Guimarães. A distância de poucos quilômetros permite que se veja o horizonte sombrio lá embaixo.
“Não Matarás”, mostra coletiva no Museu Nacional, apresenta-se como uma releitura do golpe militar de 1964 e dos anos de exceção que dali se seguiram. A partir de um ponto de vista bem atual – e por “ponto de vista” não devemos entender apenas esta localização tão próxima à Esplanada.Seja em obras históricas, que reaparecem mais uma vez nesta exposição, seja em peças inéditas, criadas sob encomenda para esta oportunidade, impossível dissociar por um instante “Não Matarás” dos acontecimentos que minaram a política nacional nos últimos anos e da total crise de representatividade e legitimidade do governo federal e dos demais poderes da República.
Um dos centros poéticos e temáticos da mostra, que reúne artistas brasilienses e brasileiros, é um tríptico em tinta óleo sobre madeira chamado “Exposição e Motivos de Violência”. A obra de João Câmara foi apresentada pela primeira vez no Salão de Arte Moderna do Distrito Federal de 1967.
“Aquela foi a quarta e última edição do Salão”, lembra Wagner Barja, diretor do Museu Nacional. “Foi fechado pela ditadura militar e detonado. Algumas obras sumiram, outras reapareceram em coleções particulares. Muitas foram danificadas, não sei se por ação do público ou pelo estafe da ditadura. Esta peça mesmo teve que passar por restauro.”
Como foi considerado pelo júri a obra vencedora do Salão, o tríptico de João Câmara escapou do sumiço que outras peças sofreram. Foi doada ao acervo do Museu de Arte de Brasília. Por uma nada acidental ironia, o tema desta pintura é justamente a opressão. Aqui simbolizada de maneira quase litúrgica, como se compondo um retábulo de infame catedral, através de cenas de assassinato, tortura e submissão física.
Bem diante do retábulo de João Câmara, cruzando o amplo salão do Museu Nacional, pulsa o outro centro nervoso desta exibição. Trata-se de um conjunto de obras do artista catalão-brasileiro José Zaragoza. Pinturas, desenhos e esculturas. É justamente desse núcleo que a exposição “Não Matarás” toma emprestado seu título.
Destaque para a série “Perda de Identidade” (1984), na qual Zaragoza trabalha em ferro com a forma humana – e seu negativo – num jogo de presença/ausência que ali adiante se amplifica através do painéis de acrílica sobre madeira que formam “Desaparecidos” (1983).
Todas essas peças de Zaragoza pertencem ao acervo do Museu Nacional e já foram vistas em outras mostras da instituição, ao longo de seus dez anos de funcionamento, embora talvez sem o impacto que agora causam.
No bojo de uma mostra, natural que uma obra contamine a outra ali ao lado. Que uma delas desperte ou realce sentidos que podem ser menos evidentes na outra. Que as duas se juntem para direcionar o olhar do espectador sobre uma terceira peça. E assim sucessivamente, indefinidamente, subjetivamente, num jogral de gestos e intenções.
Nesse sentido, o peso, a envergadura e estridência da obra de Zaragoza levam junto no seu furor político uma peça do artista brasiliense Gougon, que foi esculpida exatinho no mesmo material, embora em menor dimensão, atingindo o mesmo interesse pelos contornos, pelas silhuetas e espaços negativos.
A temática política, que se anuncia desde a entrada no Museu Nacional, vai ganhando assim cores e materiais, gestos e intenções, se tornando um pouco mais ou um pouco menos explícita, à medida em que seguimos passeando pela exposição.
A performance é uma linguagem frequente nesta exposição tão heterogênea em fazeres e impressões. Seus registros muitas vezes estão em vídeos e fotografias feitos no momento da ação. Mas seus efeitos também podem ultrapassar aquele instante – e assumir novos aspectos.
Christus Nóbrega, por exemplo, deu um pulo ali no sempre aprazível Congresso Nacional só para passar um aspirador de pó nos carpetes do parlamento. Mas esse gesto, já poético e político por si próprio, conduziu o artista um segundo momento.
A poeira que Christus recolheu, as imundícies de variada ordem que ele varreu do chão, agora estão a ornamentar o piso do Museu Nacional. Emprestando nova realidade visual (e tátil) para aquela recorrente expressão “varrer para debaixo do tapete”.
Tratando-se de performance e política, aliás, Bia Medeiros e seu Corpos Informáticos sempre têm muito a dizer. Em atividades permanentes há duas décadas, o grupo a esta altura já se move em diferentes células e reúne repertório dos mais emblemáticos. Quatro diferentes ações do grupo podem ser vistas em “Não Matarás”.
A mais recente deles, feita há dois meses aqui mesmo no Museu Nacional numa retrospectiva a celebrar a trajetória do grupo, consistiu em extravasar energia sobre desafortunadas cadeiras de plástico – devidamente esmurradas, quebradas, arrebentadas, estraçalhadas. Agora seus restos mortais repousam numa instalação de parede.
Outra ação do Corpos Informáticos se deu sobre muito peculiares tamancos de metal. Forjados em ferro, com um par de saltos a fazerem as vezes das duas torres do Congresso Nacional. O desenho de Oscar Niemeyer ganhou ainda tiras de couro à semelhança de rédeas, para se calçarem nos pés. Um vídeo dá conta de como funciona sair por aí a desfilar com esses “Sapatos Temerosos”.
“O acervo do Museu da República é constituído como um acervo republicano, e os artistas entendem o que significa exibir obras no Museu da República”, explica Wagner Barja, diretor da casa e curador desta exposição. “Esta, sim, é a República que nos representa.”
Todos os nichos de “Não Matarás” estão também contextualizados por frases de impacto pintadas nas paredes. Como notas de rodapés, elas guiam a visita no ritmo de poetas e libertários como Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Ariano Suassuna, Millôr Fernandes, TT Catalão e J. Pingo.
“Chega de basta!”, provocava J. Pingo.