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“São duas cidades diferentes”

É o que diz o cineasta Tiago Rocha, ao falar da Estrutural e da Cidade do Automóvel

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Metrópoles entrevistou com exclusividade a equipe do curta-metragem “Setor Complementar”, que estreia no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O diretor Tiago Rocha; o diretor de produção Pedro Beiller; o assistente de direção Danilo Rodrigues; e o diretor de fotografia Lucas Kato receberam a reportagem na Estrutural. Acompanhe os principais trechos da conversa:

Como surgiu a ideia por trás de “Setor Complementar”?
Tiago Rocha: A ideia surgiu mesmo de cotidianamente ir vislumbrando esse contraste que tem no espaço urbano. Quando você passa pela Cidade do Automóvel, a primeira coisa que você percebe é que tem calçada, mas que elas estão repletas de carros. A cidade não é orgânica. É uma cidade que, como eles mesmos dizem, é o maior polo de vendas de automóvel da América Latina – são 160 concessionárias num lugar só. São duas cidades, na verdade, dentro de uma região administrativa e que têm muito a dizer sobre a nossa sociedade em geral. É um lugar muito pequeno que tem todas essas cicatrizes da nossa forma de viver hoje em dia, da falta de direito à cidade.

De um lado, a Cidade do Automóvel e do outro, a Cidade Estrutural…
T.R. Isso. Você tem ali do lado a Estrutural, que é uma cidade que cresceu dos primeiros chacareiros e catadores, além do boom dos anos 1990. Ela tem uma história supercomplexa de lutas e de clientelismo, principalmente na luta por moradia, que reflete uma das coisas mais difíceis no Distrito Federal hoje, a questão da terra. Só que, apesar de sempre ser retratada como um lugar violento, de forma marginalizada, é um lugar onde as pessoas andam na rua, ocupam as esquinas, têm um senso de comunidade e usam muito a bicicleta –- uma coisa que sempre me chamou muito a atenção.

Daí a discussão sobre mobilidade urbana?
T.R.: É, tudo começou porque a gente tinha um projeto com bicicletas aqui, desde antes de o Coletivo da Cidade ser criado (em 2011). Lá, a gente discutia muito a questão da mobilidade urbana com as crianças e, na época, eu usava muito a bicicleta como um meio de transporte e vinha sempre pra cá assim. Aí, eu passava pelas duas cidades: a do Automóvel e a Estrutural. E era muito visível essa discrepância e quando fui pesquisar é que descobri que era uma região administrativa específica – o Setor Complementar de Indústria e Abastecimento (SCIA). Vi também os índices socioeconômicos e soube que aqui é onde há uma das maiores proporções de bicicleta por domicílio.

Se não me engano, mais de 40% da população tem uma ou duas bicicletas em casa. E hoje é uma população grande, né, são mais de 40 mil pessoas e as distâncias se tornam um pouco maiores, mas é tudo bem plano, então é muito bom andar de bicicleta. Além disso, é uma cidade que tem uma cultura muito forte da reutilização e da economia, o que dialoga com as bicicletas.

Tiago Rocha

Rafaela Felicciano/Metrópoles

Por que filmar na Estrutural?
T.R.: O filme tenta ser um retrato do espaço físico. Essa cidade à qual o governo dá o nome de Complementar de Indústria e Abastecimento, na verdade, são duas cidades diferentes. Uma coisa sobre a qual eu sempre me questionei, por exemplo, é “quem que mora na Cidade do Automóvel? Será que mora alguém lá?”. Eu acho que ficam os vigilantes que pernoitam e só.

Qual é a relação deste retrato com o Distrito Federal de uma forma geral?
T.R.: Brasília tem essa questão de ter sido construída por um presidente num período em que se vislumbrava muito a questão do modernismo, a ideia de que o homem impulsionado pela máquina seria aquele sonho do futuro. Então, o Juscelino Kubitschek foi um presidente que investiu muito na indústria automobilística e, ao mesmo tempo, estava construindo a capital. Por isso que Brasília é uma cidade linda, mas de espaços urbanos extremamente esvaziados e uma cidade que não é das pessoas, que é hostil às pessoas. Então, você consegue ver muito mais humanidade na cidade que surgiu ao redor do lixão, apesar de todo o glamour de Brasília.

Foi uma experiência superlegal. A gente teve como principal base o Coletivo da Cidade, que foi nosso ponto de partida e que também entrou como produtor do filme. Tudo partiu de oficinas e atividades que a gente já tinha feito com as crianças, onde a gente teve a ideia de fazer esse retrato do Setor Complementar a partir da perspectiva deles, que crescem nesse mundo.

Tiago Rocha

Então as crianças não eram atores?
T.R.: A gente fez um trabalho de dois meses com o Vítor Abraão, que foi nosso preparador de elenco, e o Gabriel Colela. Aos poucos, eles iam brincando com a câmera e aprendendo um pouco de teatro. No final, a gente chamou aqueles que ficaram e se envolveram mais com as oficinas para participar do filme.

Vocês acham que esse filme é uma forma de ampliar a voz dessas pessoas?
T.R.: Sim, porque acaba que o cinema pode se tornar uma coisa muito elitizada – e o é, querendo ou não. Então, ter essas posições de fala, que são posições de poder, e ocupá-las com suas ideias é muito interessante.

Vocês não são moradores da Estrutural. Como foi a relação de vocês com a comunidade?
Pedro Beiler: Eu já filmei umas três vezes aqui na Estrutural, em outras situações, e sempre foi assim: você vem, filma, não estabelece relação com ninguém, vai embora e depois não volta mais. Nesse trampo, eu achei muito massa porque tinha esse rolê do Coletivo da Cidade, que acabou nos inserindo muito mais por aqui e nos permitindo conhecer melhor as pessoas, trocar várias ideias e experiências. Sem contar com isso de buscar as pessoas nas ruas. O que rola é que muitas vezes as pessoas só filmam fora do Plano Piloto por dois motivos. Um porque o Fundo de Apoio à Cultura (FAC) pontua, outro porque têm uma visão de um lugar exótico, que você vê no resultado aquela coisa estranha, e que eu acho que não é o caso.

Uma coisa muito interessante, também, é que as crianças acabaram dando todo o tom no resultado final.  Na verdade, nós tivemos muitos imprevistos, na última hora alguns deles não podiam ou desistiram de participar, mas alguns bateram no peito e falaram ‘vamos!’. Isso foi inesquecível, mesmo.

Danilo Rodrigues

Vocês esperam despertar algum tipo de discussão a partir do filme?
T.R.:
Pra ser sincero, eu já estou em um ponto do filme em que eu não tenho mais muita opinião sobre ele. Eu estou mais interessado mesmo em saber o que as pessoas acham, para eu ver o que funcionou ou o que as pessoas identificaram nele. O legal é que esse filme levanta várias questões, mas deixa várias em aberto também.

Apesar do interesse por filmar fora do Plano Piloto, o acesso a essas produções é muito restrito. Dificilmente esse filme vai ser visto pelos moradores da Estrutural, por exemplo. Por que isso ocorre?
P.B.: Acaba que no FAC você tem bem mais recurso para a produção do filme e menos para a distribuição e a exibição, seja para a construção de salas de cinema ou para esses filmes passarem nas que já existem. A gente precisa criar esse público. No fim, muita gente nem sabe que esses filmes existem.

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