Corte de cabelo com machado rende fama a refugiado sírio no DF
O ex-estudante de direito Ammar Kalsh, 24 anos, deixou a guerra em seu país natal para trás e chegou ao Brasil em 2014
atualizado
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O clima de tensão e a interminável guerra que já dura seis anos na Síria levaram Ammar Kalsh, 24 anos, a fugir do país. Após uma série de percalços, o ex-estudante de direito encontrou no Brasil, em 2014, um novo lar. E foi no Distrito Federal — mais precisamente em Ceilândia — que o jovem recomeçou a vida.
Ammar, que trabalha há dois anos como cabeleireiro na Barbearia Diniz, no Setor M de Ceilândia Sul, ganhou fama ao divulgar, na semana passada, um vídeo em que corta o cabelo de um cliente utilizando machado e martelo. Considerada inicialmente uma brincadeira, a inovação rendeu fama ao profissional.
Meus colegas me mostraram o vídeo de um barbeiro fazendo um corte com machado. Vi e falei: ‘eu consigo fazer’. Foi daí que partiu a ideia. Gravamos o vídeo e a história se espalhou
Ammar Kalsh
Após a filmagem rodar a internet, ele recebeu mais de 350 solicitações de amizade no Facebook e angariou a simpatia dos moradores da região. Muitos têm ido à Barbearia Diniz apenas para tirar fotos com Ammar. Arriscar-se no corte com o machado, porém, é para poucos.
Assista ao corte inusitado feito por Ammar, com machado e martelo
Apelidado de “Homem-Bomba” pelos colegas de barbearia, Ammar hoje se dedica a aprimorar a técnica degradê, mas não quer parar por aí. Ele aposta na criatividade para atrair a clientela. “O próximo passo é aparar barbas com fogo e o machado”, conta.
A boa receptividade no Brasil ajudou o refugiado a esquecer um pouco dos horrores da guerra e voltar a sonhar. O grande plano é a abertura de um negócio próprio em 2018. “Vou chamá-lo de Salão do Ammar, onde você entra feio e sai bonito”, brinca o sírio, que está bem adaptado à cultura nacional. Torcedor do Flamengo, o estrangeiro já adota gírias no vocabulário. “Aqui é cabuloso”, diz com o sotaque carregado.A saga rumo ao Brasil
Antes de a guerra explodir, a vida na Síria era complicada, mas aceitável. Ammar estudava direito e trabalhava como vendedor de roupas em Damasco, capital do país. Com o início dos confrontos em 2011, os sonhos foram minados.
O conflito bélico que começou com opositores ao regime do ditador Bashar al-Assad logo descambou para um violento enfrentamento, incluindo a investida do Estado Islâmico e divergências entre as potências mundiais sobre como tratar o assunto.
No centro desse desastre, a obrigatoriedade de servir o Exército para defender o regime de Assad e a escalada da violência mexeram com o jovem. Especialmente quando ele viu, em 2012, uma bomba explodir e matar três amigos que estavam a poucos metros de distância. Ter que se livrar dos escombros e ver pedaços dos corpos dos colegas espalhados ao seu redor fizeram-no concluir que precisava sair de sua terra para não ter o mesmo fim. Na época, ele estava com 19 anos.
Não sou capaz de matar ninguém nem queria morrer. Sou da paz. Se tivesse que ficar na Síria para trabalhar na guerra, tenho certeza absoluta que morreria. Era isso o que eu pensava quando decidi fugir de lá
Ammar Kalsh, barbeiro
Com as restrições que centenas de países impuseram a imigrantes, Ammar e a família escolheram a Jordânia como abrigo, com exceção do irmão Ahmad, que estava servindo o Exército. A recepção não foi boa, uma vez que sírios não podem trabalhar legalmente no país. Os nativos que se dispõem a dar emprego aos refugiados pagam salários baixos. Segundo Ammar, quando o governo local descobre alguém nessa situação, prende o estrangeiro ilegal e aplica multa.
Após quase dois anos na Jordânia, a situação da família ficou insustentável em Amã, capital do país. Foi então que eles se dividiram: Ammar e o irmão Amjad vieram para o Brasil, um dos poucos países com as portas abertas para os sírios. A mãe, Fathia, e a irmã, Dana, voltaram para Damasco, enquanto o pai, Fathi, e o irmão Yazan seguiram para Berlim, na Alemanha, cidade onde mãe e filha conseguiram reencontrá-los posteriormente.
Ammar e o irmão Amjad vieram juntos para o Brasil. O ex-estudante de direito ouviu falar que aqui poderia recomeçar a vida. Não pensou duas vezes e desembarcou em São Paulo após três dias viajando de avião.
Chegada em Ceilândia
Em São Paulo, Ammar foi atrás de um brasileiro que havia conhecido pela internet, mas não conseguiu mais contato com o amigo virtual e procurou novamente ajuda. Dessa vez, a dica foi certeira. Mesmo ainda morando em Amã, o irmão Ahmad ficou sabendo que no Distrito Federal havia uma igreja em Ceilândia, na M Norte, que poderia receber os refugiados.
Foi então que Ammar e Amjad vieram para o DF. Posteriormente, Ahmad também decidiu vir para a capital do país, pois conseguiu se aposentar após perder um olho na guerra da Síria. Pela primeira vez em anos, Ammar sentia ter um novo lar. Morou na igreja e começou a restabelecer sua vida. A necessidade de aprender a língua portuguesa o levou a pedir emprego em um salão de beleza. “Acreditava que o convívio ali facilitaria o aprendizado”, lembra.
O início foi duro, mas valeu a pena. Ammar trabalhou de graça durante três meses e a recompensa veio com o curso de cabeleireiro pago pelos donos do salão. Hoje ele trabalha legalmente no país, pois faz parte dos 2.298 refugiados sírios que buscaram abrigo no Brasil, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).
O que mais gosto no Brasil são as pessoas. Aqui elas têm muito amor no coração, coisa que em muitos países a gente não vê. Eu adoro esse povo
Ammar Kalsh
Ammar hoje mora com os irmãos em Vicente Pires, mas mantém contato com os pais e a irmã que vivem em Berlim. Eles se falam diariamente via Skype e WhatsApp. “Sinto-me com eles quando ligo para minha família”, conta. Todos estão de alguma forma presentes no dia a dia de Ammar. Em seu braço direito, ele leva a tatuagem com o nome do pai, Fathi, da mãe, Fathia, da irmã, Dara, e dos irmãos Yazan, Ahmad, e Amjad.
Quem quiser ouvir essas e outras histórias de vida de Ammar basta visitá-lo na Barbearia Diniz. O local fica aberto de segunda a sábado, das 8h às 21h, e aos domingos, das 8h às 13h.