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O que poderia levar uma mãe a matar o próprio filho?

Especialistas apontam problemas psicológicos para explicar o crime do qual a pediatra é acusada. Tragédia ocorreu na 210 Sul

atualizado

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1 de 1 medica - Foto: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Fins de tarde no Bloco J da 210 Sul, no Plano Piloto, em Brasília, costumam ser o retrato da normalidade. Cachorros passeiam no gramado e crianças correm pelo bem-cuidado piso de granito, enquanto pais conversam sobre amenidades na tranquila quadra, habitada principalmente por famílias de militares.

Uma das risadas que ecoavam sob o pilotis do prédio era a de João, 3 anos. Mais cedo, na quarta-feira (27/6), ele havia pedido para ajudar a limpar os vidros da entrada. Depois, subiu ao lado da avó para o 4º andar, onde dividia um confortável apartamento com ela e a mãe, a pediatra Juliana de Pina Araújo, 34 anos.

Eram quase 18h quando o desespero de Juliana invadiu o cenário de tranquilidade e fez com que ele ruísse. A médica chegou ao térreo do edifício ferida, coberta de sangue. Tinha cortes nos pulsos e no pescoço. Aos prantos e muito agitada, teria dito ao porteiro que havia matado o filho e desejava tirar a própria vida.

O funcionário do bloco e um vizinho contiveram Juliana, que tentava correr para a L2 Sul com planos de se deixar atropelar. Outro morador do prédio foi até o apartamento da família. Encontrou João desacordado e desceu com a criança nos braços.

O porteiro, Juliana, a mãe dela, o pequeno João e o vizinho que prestou socorro seguiram de carro para o Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), onde a pediatra trabalha, mas a criança não resistiu. A suspeita da polícia é de que Juliana tenha colocado remédios ou veneno na mamadeira de João. Em seguida, a médica tentou suicídio. O enterro do menino deve ocorrer nesta sexta-feira (29), no cemitério Campo da Esperança da Asa Sul.

Prédio na 210 Sul onde ocorreu a tragédia

 

A mãe segue internada na ala psiquiátrica do Instituto Hospital de Base do Distrito Federal (IHBDF). A polícia confirmou que Juliana tinha um quadro de depressão diagnosticado desde 2016 e até chegou a ficar afastada do trabalho por alguns períodos, para realizar o tratamento. A pediatra foi presa em flagrante pelo crime de homicídio duplamente qualificado. Se condenada, pode pegar entre 12 e 30 anos de prisão.

“Não entendemos nada”
Vizinhos, familiares, colegas de trabalho e desconhecidos se perguntam o que teria levado Juliana a se tornar a principal suspeita de assassinar o próprio filho. “Amigos que os atenderam ontem, no Hmib, estão em estado de choque. Não entendemos nada. Juliana é uma pessoa maravilhosa, de coração enorme, menina doce, supermãe e excelente médica”, descreveu um profissional do hospital. 

O ex-marido de Juliana prestou depoimento na delegacia e confirmou o quadro de depressão. Segundo ele, os dois se separaram por esse motivo. Em uma ocasião, contou, a ex-mulher teria dito que gostaria de “engolir um bisturi” para morrer. Também havia sintomas da doença, como reclusão, choro constante e desapego com cuidados pessoais. O ex-companheiro, contudo, classificou Juliana como uma mãe que “adorava o filho”.

De acordo com funcionários do condomínio onde a família vive, a avó de João teria contado que, há cerca de duas semanas, tentou convencer a filha a se internar por estar muito deprimida, mas a médica teria rejeitado ajuda.

A psiquiatra Alexandrina Meleiro, doutora pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), afirma que, provavelmente, não se trata de um caso de “índole perversa”, mas sim de ação decorrente da doença.

“Na depressão, neurotransmissores como serotonina, noradrenalina, dopamina e glutamato são alterados. Isso gera desequilíbrio, desesperança, dor e desespero. A pessoa acredita não ser digna de ajuda”, explica a especialista.

A depressão tem caráter genético e fatores ambientais – como dificuldades, perdas e estresse – são alguns agravantes do quadro. “Ela evolui gradativamente e vem sorrateiramente. A pessoa vai perdendo o prazer pelas coisas, deixando de fazer atividades, de se cuidar, de tomar banho”, exemplifica Alexandrina Meleiro.

A psiquiatra ressalta que esse grau de depressão gera distorção cognitiva. “Ela pensa em tirar a própria vida e, para proteger o filho, na visão dela, leva a criança junto. Uma pessoa saudável não consegue calcular o nível de sofrimento pelo qual essa mulher passou e ainda vai passar”, afirma.

O infanticídio pode ser decorrente de alterações muito importantes, sofridas e doloridas

Alexandrina Meleiro, doutora em psiquiatria

Quem cuida do doutor?
A incidência de suicídio entre médicos é pesquisada por Alexandrina Meleiro. “Estudos recentes têm apontado uma cifra de suicídios de duas a quatro vezes maior entre médicos, numa comparação com a população em geral”, diz.

No Brasil, homens costumam se matar duas vezes mais do que mulheres. No âmbito dos profissionais de medicina, a proporção entre os gêneros é a mesma.

“São diversos fatores que levam a pessoa a uma atitude como essa. Na profissão, lida-se com muita pressão, sofrimento e exaustão. A maior dificuldade para o profissional médico é pedir ajuda. Há um conceito de que ele sabe se cuidar e adoecer seria fracasso”, afirma Alexandrina.

A especialista também ressalta que médicos têm conhecimento de como tirar a própria vida, além de fácil acesso a remédios. Tais fatores seriam agravantes.

“A mãe não é um monstro, mas fez uma monstruosidade”
O ex-companheiro de Juliana relatou na delegacia que os sintomas de depressão começaram a aparecer após o nascimento do filho, em 2014. Dois anos depois veio o divórcio, sugerido por Juliana.

“É um caso que poderia ter sido tratado e, por alguma negligência, não foi. A mãe não é um monstro, mas fez uma monstruosidade. Isso nos faz pensar na complexidade da relação entre pais e filhos. Ela mata o filho, pois ele está confundido com a própria experiência de sofrimento. É uma extensão da pessoa”, observa a psicanalista Vera Laconelli, doutora em psicologia pela USP e diretora do Instituto Gerar.

Romantizar a maternidade, sem discutir as dificuldades dessa experiência, também dificulta que mães peçam ajuda quando têm problemas no cotidiano. “A nossa cultura tende a tirar todas as contradições, ambivalências e lutos dessa vivência. Finge que tudo é um mar de rosas. Essa é uma das questões que levam à negligência no tratamento de mães e pais”, explica Vera.

Tabu
Aos poucos, crianças voltarão a correr debaixo do Bloco J da 210 Sul. O assunto entre os pais voltará a ser o tempo, a taxa de condomínio, se a Seleção Brasileira ganhou ou perdeu. Mas lembrar a ausência de João será necessário para evitar que a tragédia se repita.

Doenças mentais não podem ser tabu. Quanto mais a gente souber do assunto, falar sobre ele, mais vamos partir para ações necessárias, de identificar o que leva à impotência e à extrema desesperança”, conclui a psiquiatra Alexandrina Meleiro.

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