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Zeina Latif: “Haddad ainda não passou por seu grande teste” no governo

Ministro da Fazenda terá de “trazer Lula” para agenda de corte de gastos, diz economista. Segundo ela, PIB pode surpreender de novo em 2024

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Em pouco mais de um ano no comando do Ministério da Fazenda, Fernando Haddad teve “alguns acertos muito importantes”, entre os quais a aposta na reforma tributária, mas ainda não passou por seu maior teste: convencer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva da necessidade de cortar gastos. A avaliação é de Zeina Latif, ex-economista-chefe da XP Investimentos e ex-secretária de Desenvolvimento Econômico do estado de São Paulo, atualmente sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

“O grande teste para o Haddad é o quanto ele vai conseguir trazer a agenda de contenção de gastos. Em que momento ele vai trazer o Lula para essa agenda”, afirma Zeina, em entrevista ao Metrópoles.

“Essa é a grande questão que mexe na percepção dos agentes econômicos e que vai definir o quanto se vai conseguir segurar o funcionamento do arcabouço fiscal. Cedo ou tarde, o ministro terá de colocar isso em pauta”, diz a economista.

Apesar de elogiar Haddad, Zeina critica o novo Marco Fiscal, excessivamente dependente de um aumento significativo da arrecadação. “Não é um bom regime fiscal, não é crível. Não tem como sustentá-lo, e a meta (de zerar o déficit primário em 2024) terá de ser mudada. A análise que eu já fazia e mantenho é que a tendência do governo é fazer essa mudança a conta-gotas, aos poucos, tentando não afetar muito as expectativas do mercado”, afirma.

Sobre as perspectivas da economia brasileira neste ano, em meio a uma série de projeções apontando para uma forte desaceleração do Produto Interno Bruto (PIB), Zeina Latif avalia que “existe espaço para uma surpresa”.

Leia os principais trechos da entrevista de Zeina Latif ao Metrópoles:

O desempenho da economia brasileira surpreendeu em 2023, com uma expansão do PIB estimada em cerca de 3%. O mercado projeta desaceleração em 2024, com alta em torno de 1,5%. O país pode surpreender novamente ou a tendência é mesmo um desaquecimento?

Existe espaço para surpresa. Ainda temos o efeito da política monetária se materializando. Ainda demora um tempo para que o corte de juros traga alívio. Em 2024, obviamente, não teremos o grande impulso do agronegócio no ano passado, mas são coisas que já estão na conta. Quando olhamos para a situação das famílias, houve um endividamento muito forte nos últimos anos, somado à alta de juros, que foi necessária em determinado momento. Houve um aumento da inadimplência e boa parte do orçamento das famílias foi comprometido com o pagamento de dívidas. Isso impactou o mercado de crédito. A minha avaliação é que essa piora é um ciclo que está se completando. Ao longo de 2024, deve haver um alívio. Mesmo do lado das empresas, tivemos no ano passado momentos muito difíceis, como o problema na Americanas, que talvez tenha sido o ponto mais crítico. Aparentemente, temos alguns sinais de acomodação para este ano. Outro ponto que precisamos monitorar está relacionado à queda de investimentos no ano passado. É possível que alguns fatores que levaram a essa queda sejam transitórios. Parte importante da queda é atribuída ao agro, cuja demanda e rentabilidade caíram. Também houve um aumento de custo muito alto para algumas lavouras. Esse setor colocou o pé no freio em suas decisões de investimento – e é um setor que tem o investimento e a inovação marcados em seu DNA. Isso machucou muito no ano passado, mas é algo transitório. Por fim, como havia uma preocupação muito grande em vários setores com a reforma tributária, é possível que muita gente tenha segurado decisões de investimento até que ficassem claros o teor da reforma e os impactos setoriais. Grande parte desse problema já foi superado com a aprovação da reforma, de modo que poderemos ter uma retomada nesse aspecto. Pode ser que a gente se surpreenda.

Quais são os principais obstáculos ao crescimento da economia brasileira neste ano?

Sabemos que, estruturalmente, o país tem uma taxa de investimento muito baixa, que limita o nosso potencial. A questão da insegurança jurídica, sem dúvida, é um ponto importante. Mas também temos de reconhecer fatores de curto prazo que podem ter afetado os investimentos no ano passado. O grande obstáculo é que a gente precisaria ter mais motores para esse crescimento. O Brasil é um país que está muito atrasado nisso. Não é um cenário desastroso, mas realmente precisaríamos ter uma agenda mais ambiciosa para acelerar o crescimento.

Qual é a sua avaliação sobre a reforma tributária? Ficou de bom tamanho ou poderia ter sido melhor?

Não há dúvida de que poderia ter sido melhor. Ter perdido o “timing” em 2019 (no primeiro ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro) cobrou um preço alto. O assunto ficou “cozinhando” e isso gerou a movimentação de grupos organizados para conseguir benefícios. Mas um ponto importante é que temos visto alternância de poder no país e a agenda de reformas sendo mantida. Tivemos a reforma trabalhista no governo Temer, a reforma da Previdência gestada no governo Temer e aprovada no governo Bolsonaro e, agora, a reforma tributária. Tem mérito nisso. O atual governo ter criado uma secretaria especial para tratar do tema e aproveitado discussões acerca do assunto em governos anteriores é meritório. Dito isso, estamos vendo as dificuldades políticas enfrentadas pelo governo. Houve muita pressão dos lobbies no Congresso e a fatura acabou ficando mais cara. Era muito importante que esse tema não fosse politizado. Quando começaram as discussões no atual governo, eu sentia muita falta de um posicionamento do presidente Lula. Depois, com o tempo, eu entendi que talvez fosse melhor que o presidente da República não se envolvesse diretamente, para evitar essa politização. Mas o fato é que o governo perdeu algumas batalhas. Quando a reforma foi para o Senado, com relatoria do senador Eduardo Braga (MDB-AM), já era um sinal de que haveria concessões para a Zona Franca de Manaus. E isso puxou a fila… Vimos concessões excessivas, algumas delas inaceitáveis. Por outro lado, chegamos a uma situação em que, mesmo sendo uma reforma aquém do esperado em relação a 2019, valia a pena aprová-la. É claro que foi um passo muito importante, pela relevância do tema e porque a reforma ajuda a melhorar o ambiente de negócios no país.

Há um debate em torno do cumprimento da meta de zerar o déficit primário em 2024. O mercado acredita no compromisso do governo com o ajuste fiscal?

Na verdade, nunca se comprou que o governo conseguiria zerar o déficit. Nunca. Quando houve o anúncio do Marco Fiscal e das metas, ninguém melhorou projeção. Todo mundo já estava trabalhando com projeção de déficit e isso se manteve. Além de depender de um aumento de carga tributária que é inviável, o arcabouço fiscal tem suas inconsistências internas. Se aumentar a arrecadação, tem de aumentar também gastos com saúde e educação. A conta não fecha. Ele já nasceu com problema de falta de credibilidade. Não é factível. Você simplesmente não consegue fazer um orçamento no qual as despesas vão crescer 50% das receitas. Só se houvesse um aumento cavalar das receitas, e olhe lá! Sabemos que isso não vai acontecer. O alívio do mercado financeiro naquele momento foi perceber que, pelo menos em tese, havia alguma preocupação com o fiscal. Uma parcela do mercado tinha receio de algo totalmente descontrolado, como no governo Dilma. Era um exagero, mas havia esse temor. O mercado esperava algo realmente muito ruim.

Quando você acha que a meta vai mudar?

O arcabouço não é um bom regime fiscal, não é crível. Não tem como sustentá-lo, e a meta terá de ser mudada. A análise que eu já fazia e mantenho é que a tendência do governo é fazer essa mudança a conta-gotas, aos poucos, tentando não afetar muito as expectativas do mercado. Vai ter de mudar a meta. A discussão é quando. Acredito que isso aconteça no decorrer do ano, aos poucos. A Fazenda sabe que precisa ser cautelosa nessas mudanças.

No fim do ano passado, o presidente Lula editou a MP da Reoneração, revogando a decisão do Congresso de prorrogar a desoneração de 17 setores da economia. Quem levará a melhor nessa queda de braço entre Executivo e Legislativo?

Há um fato concreto: essa despesa não estava prevista no Orçamento. Quando tiver de colocar no Orçamento, será mais um fator a corroborar a necessidade de mudança da meta. A minha leitura é a de que esse era um tema muito importante não apenas sob o ponto de vista fiscal. A desoneração não foi uma boa ideia de política pública. O Congresso deu todos os sinais de que avançaria com esse tema. Não foi uma grande surpresa. Se houvesse, de fato, a intenção do governo de comprar essa briga, eles deveriam ter feito essa proposta (MP de Reoneração) lá atrás. O assunto estava sendo debatido havia meses. Se fosse mesmo uma briga que o governo entendesse que valia ser comprada, ele já teria soltado a MP faz tempo. Eu concordo com o teor da MP. Achei sábia a decisão de não eliminar totalmente e propor uma solução intermediária. Sabemos que tentar eliminar de uma vez é muito mais difícil, e eu não vejo o governo com essa força toda. A solução que encontraram foi adequada. Mas fico com a sensação de que não é uma batalha que estão fazendo questão de ganhar. Não acho que vão colocar todo o capital político do governo nisso. Tem um pouco de jogo de cena. Se fosse para valer, teriam discutido isso lá atrás. Tem uma lógica da política que me escapa, mas acho que nunca foi uma prioridade do governo.

Em entrevista ao Metrópoles, em fevereiro de 2023, você afirmou que a equipe econômica parecia não ter tanta autonomia em relação a Lula e mesmo a setores do PT. Um ano depois, esse cenário se mantém?

Nenhuma equipe econômica tem autonomia em relação ao presidente. Isso não existe. Já vimos isso em governos anteriores. Nessas agendas que envolvem mexer com muitos grupos organizados, agendas que dependem de capital político, o máximo que o ministro pode fazer é levar ao presidente a melhor solução técnica, avaliar os prós e contras. É claro que ele também pode ajudar nas negociações, mas é o presidente quem tem de topar a briga e colocar os seus negociadores e estrategistas políticos em ação. Isso vale para qualquer governo. O que podemos discutir é qual o grau de influência que o time econômico tem para pautar essas coisas. O quanto a equipe consegue ter credibilidade, e o presidente dá o devido peso para essas discussões técnicas. Pelas próprias falas do Haddad, percebemos que ele não vai entrar em brigas se isso não for minimamente costurado com o Lula. Não vejo como. Ele mesmo diz: a palavra final é do Lula. E funciona assim mesmo. Agora, não se deve confundir isso com falta de poder do ministério. Tem horas em que vai ter mais peso, tem horas em que vai ter menos peso… Depende do tema. Não existe um time econômico que vai lá e impõe a agenda. Depende da importância do tema, para ver se vai prevalecer a recomendação técnica da Fazenda ou a visão da classe política.

Antes de assumir a Fazenda, Fernando Haddad era visto sob forte desconfiança pelo mercado. Como você avalia a atuação do ministro no primeiro ano de governo? Foi uma boa surpresa?

O ministro Haddad teve alguns acertos muito importantes. A questão da reforma tributária foi um grande acerto. Ele criou uma secretaria para isso. Ele disse ao presidente que aquela era uma agenda importante para o país. Aparentemente, ele se mostrou politicamente hábil em alguns momentos. O que eu vejo como um ponto que preocupa é uma agenda muito concentrada em aumento de arrecadação, muito pautada pela receita. O grande teste para o Haddad é o quanto ele vai conseguir trazer a agenda de contenção de gastos. Em que momento ele vai trazer o Lula para essa agenda. Essa é a grande questão que mexe na percepção dos agentes econômicos e que vai definir o quanto se vai conseguir segurar o funcionamento do arcabouço fiscal. Cedo ou tarde, o ministro terá de colocar isso em pauta. Tem que ter muita sorte para emplacar essa agenda de contenção de despesa. Eu não via o Haddad no ministério como um desastre. Nunca pensei dessa forma. Por outro lado, acho que ele ainda não passou pelo seu grande teste.

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