Reforma tributária virou um “Frankenstein”, diz Felipe Salto
Ex-secretário das Finanças de São Paulo acredita que substitutivo da Câmara pode aumentar a carga tributária e até piorar o sistema atual
atualizado
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Há três décadas, o Brasil discute as bases de uma reforma tributária. Agora, a Câmara dos Deputados acredita que pode aprovar o substitutivo da Proposta de Emenda à Constituição que trata do assunto (a PEC 45/2019) nesta semana. “Melhor não”, diz o economista Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda de São Paulo e, atualmente, na corretora Warren Rena.
E por quê? Para ele, o projeto, composto pela reunião de um sem-número de fragmentos de demandas, transformou-se num Frankenstein. Dessa forma, pode piorar o sistema atual – o que seria uma façanha e tanto –, aumentar a carga tributária e movimentar um tremendo contencioso jurídico. E como isso pode acontecer? É o que Salto diz, a seguir, em entrevista ao Metrópoles.
Quais são as chances de a Câmara aprovar o substitutivo da PEC nesta semana?
Na Warren, temos uma área de análise política e, nos últimos dias, esse grupo mudou de “improvável” para “provável” a possibilidade de aprovação do texto. Então, as chances são grandes. Mas isso é um problema. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), vem colocando para dentro da proposta todos os pleitos que chegam. Isso aumentou as chances de aprovação da mudança, mas desfigurou o projeto.
Do jeito que está, como o senhor avalia o projeto?
Agora, a reforma tributária virou uma espécie de Frankenstein. É muito temerário aprovar esse projeto. O texto, como está, é muito ruim.
Quais são os principais problemas?
A reforma prevê, por exemplo, a criação de um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais. Ele tem como objetivo compensar os estados que não poderão mais oferecer incentivos, como descontos do ICMS, para atrair indústrias. Isso porque o imposto não será mais cobrado no lugar de origem do produto, ou seja, mas, sim, no destino, no local de consumo. Assim, os governadores não tem mais como oferecer essa vantagem para atrair empresas.
Mas essa é uma mudança desejável.
Sim. Quando eu era secretário da Fazenda, em São Paulo, já defendia uma reforma na qual a cobrança do ICMS migrasse da origem para o destino. A grande vantagem dessa alteração seria pôr fim à guerra fiscal. O problema é que isso gera um conflito. Os governadores que dependem de incentivos querem compensações. Essa é uma das discussões que está acontecendo agora.
Eles vão conseguir essa compensação?
É aí que entra o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais. O governo diz que vai começar a aportar recursos da ordem de R$ 8 bilhões, já em 2025, nesse fundo. Eles chegarão a R$ 32 bilhões, em 2032. O problema é que, pelas contas do Tesouro Nacional, existem hoje R$ 200 bilhões em incentivos do ICMS. Assim, quando os R$ 32 bilhões acabarem, quem vai ficar sem dinheiro? Além disso, existe outro problema.
Qual?
Ele está no parágrafo oitavo, no artigo 11º do substitutivo. Ninguém prestou atenção nisso. Ali, está escrito que a União complementará esses recursos no valor que for necessário. Então, o céu é o limite. Estão espetando mais uma fatura na União, num momento de ajuste fiscal. Isso vai redundar num aumento da dívida pública ou numa elevação da carga tributária. Não há outra saída.
Como se resolve essa questão?
Quando você conversa com os técnicos, eles dizem que muitos desses benefícios são irregulares. Assim, depois de passar um pente-fino, esse valor de R$ 200 bilhões vai cair. Mas precisa, como dizem, combinar com os russos. Isso porque, quando você fala com os estados, eles dizem que estão fazendo tudo certinho. Eu fui secretário da Fazenda e sei que um estado fica vigiando o outro. Se algum faz uma coisa errada, os outros correm para denunciá-lo. Assim, não se sabe quanto esse valor pode cair. Mas, para completar, existe um entrave adicional.
Qual?
A pergunta é quem vai fazer esse pente-fino? A Receita Federal? Ela tem ingerência sobre o ICMS, um imposto estadual? Isso vai dar confusão. O fato é que esse fundo virou uma grande bagunça e é possível que resulte num custo fiscal enorme.
A proposta também prevê a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional, com recursos da ordem de R$ 40 bilhões. O que o senhor pensa sobre esse tema?
Nesse caso, acho a ideia interessante. Mas o fundo teria de ter bons projetos, contar com a participação de estados e municípios para discutir propostas de infraestrutura. Acho que deveria ser uma coisa muito mais sofisticada. Do jeito que está no substitutivo, vai ser um bolo de dinheiro jogado de helicóptero sobre os estados.
O que mais o preocupa na proposta?
Estão deixando muitos temas para serem definidos por lei complementar. Pelas minhas contas, vamos precisar de pelo menos meia dúzia de leis complementares para terminar a reforma. É muita coisa.
O que, por exemplo, será definido por lei complementar?
A governança, por exemplo, de um órgão que ainda será criado, o Conselho Federativo, o “Conselhão”. Ele vai administrar a arrecadação do novo Imposto sobre Bens e Serviços (o IBS, que unirá o ICMS, estadual, e o ISS, municipal). Ele vai arrecadar, regulamentar, normatizar, vai cuidar de tudo que os estados e municípios deveriam fazer. O argumento é que não seria possível fazer uma reforma de outra maneira. Eu não concordo. Acredito que não é preciso implodir todo o sistema, começar tudo do zero, para resolver os problemas. Além do mais, é muito ruim jogar o novo imposto numa instância estranha como essa, talvez até inconstitucional. Isso vai provocar uma judicialização imensa. Corremos o risco de caminhar para um sistema pior do que o atual.
Os técnicos sempre disseram que uma boa reforma tributária deveria primar pela simplicidade. O substituto guarda essa característica?
Não. Há outro risco de o sistema ficar muito mais complexo do que o atual. Por exemplo, vamos ter dois novos tributos (o já mencionado IBS e a Contribuição Sobre Bens e Serviços, CBS, que vai substituir impostos federais) e nem sabemos qual vai ser a alíquota deles. É um sistema que nasce sem alíquotas.
Mas dizem que a reforma não elevará a carga tributária. Isso confere?
Pode ter aumento de carga, sim. Existem no projeto oito exceções, descritas de forma muito ampla, como serviços de saúde e educação, insumos agropecuários e para pesca. Uma lei complementar vai detalhar esses segmentos. Eles serão taxados em 50% da alíquota de referência, que ainda será fixada. Em alguns casos, esses segmentos serão isentos. Para garantir tudo isso, vamos precisar de uma alíquota geral elevada. Provavelmente, vai acabar se aproximando de 30%. Além disso, os fundos sobre os quais falamos terão de ser custeados. Como já disse, isso vai ser feito por meio da dívida pública ou pelo aumento da carga tributária.
Diante de tantos senões, quais são os três maiores problemas do substitutivo?
Um dos maiores é o Conselho Federativo. É uma aberração. Uma estrutura que vai substituir estados e municípios, em prerrogativas que, constitucionalmente, são deles. O pacto federativo é uma cláusula pétrea da Constituição.
E os outros dois?
A falta de definição de alíquotas especificadas é outro problema. O terceiro, mas não menos importante, é a questão dos incentivos. A grande promessa da PEC 45 era promover a migração dos tributos da origem para o destino, decretando o fim da guerra fiscal. Isso não vai acontecer. Haverá uma longa transição e o ICMS e o ISS só vão acabar mesmo em 2033. Isso vai demorar muito e o fundo de compensação vai replicar o sistema iníquo de incentivos que hoje alimenta a guerra fiscal. Isso com uma agravante. Afinal, agora, a conta vai ser paga pela União, a viúva de sempre. A previsão é que esse fundo acabe em 2033. E eu poderia apostar que, em 2032, vão discutir a extensão do prazo desse negócio.