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“Problema fiscal é gravíssimo e ninguém age à altura”, diz Giambiagi

Para o economista Fabio Giambiagi, não há no governo quem faça o diagnóstico nem quem aponte uma solução para os entraves econômicos do país

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1 de 1 iamgem colorida economista fabio giambiagi fgv ibre - Foto: Divulgação

Fabio Giambiagi costuma dizer que é o único economista brasileiro que torce pelo Racing, da Argentina. Brincadeira, claro. Fala assim porque é brasileiro nato, mas filho de argentinos e mantém pronunciado sotaque castelhano. Mas, para evitar duvidas quando à nacionalidade e eventuais reações xenófobas, sempre emenda: “Também torço para o Flamengo!”.

Ainda dentro da seara futebolística, o pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-IBRE) observa que adota a postura de um zagueiro argentino para comentar as questões econômicas relacionadas ao governo Lula: “Sou firme, porém, leal”, diz. (Aliás, só um argentino, ou filho de argentinos, para definir esses beques de tal forma.)

Seja como for, pode-se dizer que Giambiagi, de 60 anos, é um craque da análise. A seguir, em entrevista ao Metrópoles, ele faz uma reflexão sobre os dilemas econômicos do atual governo com a clareza dos intelectuais que se dedicaram por anos a fio a tornar a economia palatável às massas. Não por acaso, é autor e organizador de cerca de 40 livros, entre eles, “Finanças Públicas”, em coautoria com Ana Cláudia Além, título obrigatório em qualquer curso de economia.

Como o senhor avalia o início do governo Lula, sob o ponto de vista econômico?

Nunca gostei de fulanizar discussões. Em geral, procuro ter como norma discutir ideias, não nomes. Mas creio que o país está diante de uma situação complicada. O presidente tem uma visão sobre a economia extremamente viesada e não vejo ninguém, na atual configuração, em condições de puxá-lo a um canto e dizer algumas coisas olho no olho.

Que coisas teriam de ser ditas, olho no olho?

Vou explicar. A vantagem de envelhecer é que a gente já viu de tudo na vida e a situação atual do Brasil, feita a ressalva de nossa inflação ser muitíssimo menor, lembra a dos anos 1980, na Argentina. Nesse época, o então presidente Alfonsín nomeou Juan Carlos Pugliese, um político, como ministro de Economia.

O que aconteceu?

O ministro fez um apelo público por moderação no dólar e nos preços. Como resultado, causou uma confusão enorme no mercado, pela ingenuidade flagrante com que um problema sério estava sendo encarado. Após o fato, o doutor Pugliese, como era chamado, soltou uma frase que ficou famosa: “Eu falei com o coração e me responderam com o bolso”. Vejo algo análogo acontecendo agora.

Há muito bolso e pouco coração?

Quando a gente vai ao médico, procura o quê? Um diagnóstico e uma solução, não é? É claro que o lado humano é importante. Mas a essência do trabalho do médico é identificar corretamente o problema e apontar uma solução. E qual é o drama atual? Quem entende do assunto em matéria econômica olha para um lado, olha para o outro e não consegue ver quem vai ser o médico que tratará do assunto. Não se encontra quem vai fazer o diagnóstico e muito menos quem apontará a solução.

Como o senhor avalia as declarações do presidente Lula sobre a autonomia do Banco Central (BC), algo que ele definiu como bobagem? Isso causou grande celeuma no mercado. Faltou coração à audiência?

Vamos por partes. Acompanho a economia brasileira há mais de três décadas. Nos anos 1980 e 1990, recebi inúmeras vezes investidores estrangeiros, que eram muito críticos, para conversar sobre o Brasil. Eu dizia a eles algo que era verdadeiro: “Em 99% das vezes, quando penso no que aconteceu no dia, volto para casa frustrado, porque o Brasil é um país difícil, tudo é lento, as negociações no Congresso são complicadíssimas. Porém, quando lembro o que o país era dez anos atrás, vejo um Brasil que avança”. Olhe, o Brasil adotou o Plano Real, em 1994. No ano que vem serão 30 anos. Nesse período, fizemos, como diz a música, “tijolo por tijolo”, um país melhor que o de 1993.

Em quais aspectos melhoramos?

Temos políticas sociais muito mais importantes do que antes, aprovamos a Lei de Responsabilidade Fiscal, as telecomunicações viveram um avanço impressionante. Temos o regime de metas de inflação. A aprovação da autonomia do Banco Central foi um desses avanços. E aqui retomo o tema. Ela nos aproximou do estado da arte de países como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Zona do Euro. Essa aprovação ocorreu após um debate de três décadas, porque essa discussão, a rigor, vem desde os anos 1990.

E o que representaria o fim da autonomia do BC?

Ela estaria para a política econômica como a ideia de “passar a boiada” esteve para a temática ambiental no governo anterior, desfazendo, em poucos meses, o avanço de décadas. Quero crer que tenha havido algum tipo de mal-entendido. Resisto a acreditar que o governo ingresse nesse caminho delicado.

Alguns economistas têm dito que Lula 3 está bem mais à esquerda do que o Lula 1. O senhor concorda?

Aqui, sou obrigado a citar nomes. É evidente que a última palavra é sempre do presidente, mas um bom líder é aquele que sabe escutar. Nesse sentido, pensemos em duas situações: FHC com Pedro Malan e Lula com Palocci. Alguém em sã consciência poderia pensar que Malan mandava no FHC ou Palocci no Lula? Seria ridículo. Ao mesmo tempo, existia um diálogo entre essas pessoas. Malan procurava convencer FHC e Palocci fazia o mesmo com Lula. Umas vezes conseguiam, outras não, mas isso é do jogo.

E agora?

O problema da situação atual é que não apenas o ministro da Fazenda (Fernando Haddad) age apenas como fiel executor das determinações definidas pelo presidente, como o próprio presidente parece movido pelo objetivo de demonstrar que pode ignorar olimpicamente o mercado. Sobre a relação entre economia e política, se o mercado é maltratado diariamente, vale a analogia futebolística de mestre Muricy Ramalho (ex-técnico e jogador de futebol) para os momentos em que um time joga mal: “A bola pune”.

Mas o mercado não reage de forma exagerada?

Está na hora de falar em números. Acompanho a política fiscal há mais de 35 anos. Os leitores mais jovens não viveram essa época, mas provavelmente ouviram falar da crise de 1998, que levou à desvalorização de 1999. Qual era a situação? Um déficit público (a diferença negativa entre despesas e receitas), na média do primeiro governo FHC, de 6% do PIB. Pois bem, e qual vai ser o déficit público em 2023? Provavelmente, da ordem de 8% do PIB.

Ou seja, a situação é ruim.

Sim. E fico realmente impressionado quando vejo o presidente Lula falar enfaticamente, com indignação, que ninguém tem o direito de desconfiar da seriedade fiscal dele, porque seu governo teve superávit primário (resultado positivo das contas públicas, excluindo os juros) por oito anos, entre 2003 a 2010. O que impressiona é que até agora ninguém chegou para o presidente para explicar que isso não faz sentido.

Por quê?

Porque FHC entregou a bola quicando para ele chutar em gol, tanto que o resultado primário de 2003, o primeiro ano de Lula, foi igual ao de 2002, o último de FHC: 3,2% do PIB. E agora o governo vai começar o primeiro ano com déficit primário (resultado negativo das contas públicas, excluindo os juros) da ordem de 1% do PIB. Isso é 4% do PIB pior que o de 2003. Ou seja, é como se o técnico de um time dissesse que não aceita ser questionado hoje porque sua equipe foi campeã 20 anos atrás. O que uma coisa tem a ver com a outra? O mesmo ocorre com a política fiscal: temos um problema gravíssimo e não se vê ninguém com responsabilidade agindo à altura das circunstâncias. Alguém precisa expor os números de forma nua e crua ao presidente.

O que o senhor achou das medidas fiscais recém-anunciadas pelo ministro Fernando Haddad?

Em um dos slides da apresentação, o de número 14, aparecem duas medidas de corte. Por coincidência ambas são, exatamente, de 25 bilhões. Ou seja, números perfeitos, redondos. Isso não é sério. Passa a nítida impressão de que, aos 44 minutos do segundo tempo, alguém falou: “Ih! Só temos medidas pelo lado da receita. Não vamos falar nada do gasto?” E alguém respondeu: “Põe alguma coisa aí”. Ninguém se deu ao trabalho de fazer de conta que houve algum esforço de mensuração, com certa queima de neurônios, para ver de fato o que podia ser feito, o que levou a um número redondo de R$ 25 bilhões. Ver coisa séria ser tratada com essa negligência realmente irrita um pouco.

O que mais?

Existe outra questão que preocupa e não está sendo considerada. Ela não é culpa do ministro atual, mas, sim, do anterior, e está dada. Trata-se dos precatórios. O que aconteceu com a PEC dos Precatórios do final de 2021? Basicamente, o Brasil inventou o calote ao quadrado.

Em que ele consiste?

Digamos que uma pequena empresa forneça comida ao governo. Um belo dia há uma controvérsia interpretativa e o governo decide que, em vez de pagar R$ 20 por refeição, vai pagar R$ 15. Como o empresário depende disso, continua fornecendo. Mas ele entra na Justiça para tentar recuperar o antigo valor. A coisa se estende 15 anos e, no fim de tudo, após três julgamentos, a empresa ganha. Ele tem direito a receber, digamos, R$ 15,3 milhões. E o que faz a PEC dos Precatórios? Ela permite ao governo dizer para esse pobre coitado: “Olha, meu amigo, devo, não nego, mas ou você aceita um baita desconto ou vai para o final da fila e não tenho a menor ideia de quando vou pagar”.

E esse é o calote ao quadrado?

Sim. Eu sou liberal à vera, não o liberalismo seletivo do governo anterior, que tinha uma retórica para o mercado, mas aprovou essa excrescência, uma antítese do liberalismo, pois submete quem venceu em última instância na Justiça ao poder imperial do Estado.

E que tipo de problema esse calote está causando agora?

Está se armando uma bomba de tempo, o chamado “estoque de precatórios”. Ou seja, um ano o governo não paga R$ 30 bilhões, no ano seguinte não paga R$ 33 bilhões e assim sucessivamente. Isso é um megaproblema diante do qual todos fazemos cara de paisagem, mas vai crescer como uma bola de neve se em algum momento não for encarado. E não está sendo encarado.

O senhor diz que, nessa mesma linha de bomba contra o erário, há o ICMS. Pode explicar?

Imaginemos um governador sério que assume um estado meio quebrado. Ele faz um baita sacrifício, aguenta o ônus de segurar as contas por três anos e ajusta o cinto para gastar no ano eleitoral e se reelege, com um bom caixa para fazer obras no segundo mandato. Aí, no meio do caminho, o presidente da República, querendo se reeleger, faz caridade com o chapéu alheio e acerta com o Congresso para reduzir a alíquota do ICMS para combustíveis. Isso com uma redação meio marota da lei para permitir uma compensação aos estados, que ninguém sabe muito bem como vai ser feita. Você acha que 27 governadores vão ficar chupando o dedo tendo a lei do lado deles para ter alguma forma de compensação federal diante das benesses concedidas? É claro que não. De quanto será esse cheque? Ninguém sabe. O que todo mundo sabe é que não será barato. Esse valor também não está nas contas atualmente.

Como analisa as medidas como um todo?

Eu já vi ministro ser desmentido pelos fatos. Já vi ministro se desmentir depois dos fatos, fazendo uma autocrítica. Mas nunca tinha visto um ministro desmentir o que ele tinha dito dois minutos antes. E foi isso o que ele (Fernando Haddad) fez na apresentação das tais “medidas de ajuste”. Elas se destinavam a transformar um déficit de R$ 232 bilhões em superávit primário de R$ 11 bilhões. Mas a coisa foi tão escancaradamente exagerada que, na mesma apresentação, o próprio ministro mencionou a possibilidade de, a rigor e realisticamente, ter um déficit de 1% do PIB.

O que era superávit virou déficit na mesma apresentação?

Sim. E qual é a confiança que se pode passar desse jeito? Caras chatos como nós, que nos dedicamos a destrinchar os dados fiscais, pensamos nos números com casas decimais. Ver coisas que nos obrigam a queimar muitos neurônios, analisando uma quantidade enorme de detalhes acerca das premissas das linhas X, Y e Z, tratadas com esse grau de ligeireza, cria uma grande dose de irritação nos especialistas. E isso acaba contaminando o chamado “humor do mercado”.

As medidas do ministro Haddad tentam resolver o problema pelo lado da receita. Isso está correto?

O Manoel Pires (economista do FGV Ibre) e eu escrevemos um artigo em 2022, no qual a gente dizia, com todas as letras, que era inevitável pensar em aumento de receita no começo do novo governo. Portanto, não vou cair numa postura cínica de criticar medidas fiscalistas pelo lado da receita, se acredito que isso é necessário e inevitável. Acho, porém, que é preciso mostrar  que haverá limitações ao aumento do gasto. Hoje, quem diz que o gasto pode cair está simplesmente divorciado da realidade: ele não vai cair. Uma coisa, porém, é reconhecer as limitações políticas para reduzir o gasto e outra muito diferente é olhar passivamente o que está acontecendo com o aumento dele.

O que está acontecendo?

O que está acontecendo é grave: estamos falando de um gasto que, em termos reais, pode avançar entre 6% e 7%, em 2023, num ano em que a economia crescerá talvez entre zero e 1%. E estamos fazendo isso no primeiro ano de governo. Para ter uma ideia do contraste, em 2003, essa despesa real total caiu 4%. Você consegue imaginar o que acontecerá com o gasto quando, em 2026, o presidente quiser eleger seu sucessor, tentando promover alguém que, como Dilma Rousseff em 2010, vai começar as pesquisas com 5% ou 10%? Projete uma regra de três sobre essa dinâmica do gasto no ano 1, potencializada para o ano 4, e você vai perder o sono.

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