Por que recuperações judiciais podem se aproximar de recorde em 2023
De janeiro a outubro, 1.128 empresas pediram recuperação judicial no Brasil, alta de 61,8%. Fatores econômicos e jurídicos explicam fenômeno
atualizado
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O total de pedidos de recuperação judicial de empresas brasileiras pode se aproximar, em 2023, do recorde histórico já registrado no país, de acordo com informações da Serasa Experian. De janeiro a outubro deste ano (último dado disponível), 1.128 companhias recorreram a esse instrumento, o que corresponde a um aumento de 61,8% em relação ao mesmo período de 2022.
Apenas em outubro, segundo o Indicador de Falências e Recuperação Judicial da Serasa Experian, 162 empresas pediram recuperação judicial – um crescimento anual de 51,4% e a maior marca para um único mês em mais de quatro anos, desde julho de 2019 (176). Também é o maior número para outubro desde o início da série histórica, em 2005. Na comparação com o mês anterior, os pedidos deram um salto de 19,1%.
A recuperação judicial é um processo que permite às organizações renegociarem suas dívidas, evitando o encerramento das atividades, demissões ou falta de pagamento aos funcionários. Por meio desse instrumento, as empresas ficam desobrigadas de pagar aos credores por algum tempo, mas têm de apresentar um plano para acertar as contas e seguir em operação. Em linhas gerais, a recuperação judicial é uma tentativa de evitar a falência. Nos 10 primeiros meses de 2023, 896 empresas faliram no país.
Até o momento, o recorde anual da série histórica da Serasa Experian foi registrado em 2016, com 1.863 pedidos de recuperação judicial no Brasil. Em 2017, o número caiu para 1.420, se mantendo praticamente estável em 2018 (1.408) e 2019 (1.387).
Em 2020, já primeiro ano da pandemia de Covid-19, 1.179 empresas pediram recuperação judicial. Em 2021, foram 891 e, em 2022, 833. O número acumulado entre janeiro e outubro de 2023, portanto, supera o total de 2021 e 2022 e praticamente iguala a marca alcançada em 2020.
O estudo da Serasa Experian mostra que, em outubro deste ano, as micro e pequenas empresas lideraram os pedidos de recuperação judicial no Brasil (113), seguidas pelas companhias médias (33) e grandes (16). A maior quantidade de requisições veio do setor de serviços, à frente do varejo e da indústria.
Em 2023, entre as grandes marcas que recorreram à recuperação judicial, o caso mais rumoroso envolveu a Americanas, gigante do varejo que enfrenta a mais grave crise de sua história desde que veio à tona uma fraude contábil bilionária, em janeiro. Além da varejista, também pediram recuperação judicial companhias como Oi (pela segunda vez), Light, 123 Milhas, Maxmilhas, Grupo Petrópolis, Grupo M5 (dono da M.Officer) e, mais recentemente, a gestora SouthRock, operadora de marcas como Starbucks, Subway e TGI Fridays no Brasil.
Inadimplência, recessão e pandemia
Entre os motivos que explicam o aumento do número de pedidos de recuperação judicial no Brasil nos últimos meses, segundo especialistas em reestruturação de empresas ouvidos pela reportagem do Metrópoles, estão as dificuldades advindas de períodos turbulentos da economia do país recentemente, como a recessão de 2015 e 2016 e a pandemia de Covid-19, desde 2020.
As mudanças na Lei de Recuperação Judicial e Falência (14.112/2020) também influenciaram as empresas. Em linhas gerais, essas alterações na legislação permitiram uma maior efetividade na reestruturação de companhias que passam por dificuldades financeiras e deram mais estímulos ao desenvolvimento econômico dessas empresas, por meio de novas modalidades de concessão de crédito e parcelamento das dívidas tributárias, entre outras medidas.
“Há fatores jurídicos e econômicos que explicam esse fenômeno. Tivemos uma recessão antes da pandemia, depois veio a Covid-19 e a coisa degringolou. Os bancos, que são os principais credores dessas empresas, criaram uma série de políticas para tentar uma negociação e não estavam tão em cima dessas empresas devedoras”, afirma Renato Scardoa, sócio de S.DS Scardoa e Del Sole Advogados.
“No aspecto jurídico, tivemos a reforma da Lei da Recuperação Judicial. Muitas empresas preferiram esperar um pouco para saber como essa nova lei seria aplicada e se iria vingar. As empresas acabaram buscando a recuperação judicial como uma medida de renegociação”, explica Scardoa.
Para Max Mustrangi, sócio-fundador da consultoria Excellance, especializada em reestruturação de empresas, muitas companhias foram acumulando dívidas e financiamentos nos últimos anos “para girar a operação”. “Elas foram se alavancando financeiramente em dívidas e o dinheiro foi ficando caro. Quando não há mais onde buscar financiamento no mercado, que está sem liquidez de crédito, essas empresas ficam enforcadas e não têm mais onde buscar dinheiro. Ou pedem a recuperação judicial ou vão à falência”, diz.
“É sempre assim. Os acionistas, executivos e controladores demoram demais para tomar essa decisão. Quando chegam ao pedido de recuperação judicial, a empresa já está frágil demais”, prossegue Mustrangi. “O problema não é o instrumento em si. É como você usa esse remédio, muitas vezes de forma tardia e errada.”
A avaliação sobre a demora de muitas empresas em pedir a recuperação judicial é compartilhada por Camila Crespi, especialista em reestruturação empresarial da Luchesi Advogados. “Muitas grandes empresas procuram o Judiciário em uma fase na qual as dívidas já se tornaram impagáveis. Por mais que elas apresentem um plano de recuperação, muitas vezes não conseguem honrar esses compromissos e algumas acabam optando pelo encerramento da recuperação judicial”, afirma.
Segundo a advogada, a recuperação judicial “é um instrumento eficaz desde que seja utilizado de forma correta”. “O que temos visto, infelizmente, são muitos casos de fraude ou uso indevido de recuperações judiciais, tanto que os credores estão mudando sua postura, ficando mais atentos à parte contábil, à questão financeira das empresas, principalmente depois do que ocorreu com a Americanas”, diz a advogada.
Renato Scardoa também avalia que muitas vezes o instrumento “tem sido usado de maneira tardia”. “Ainda há uma cultura de que a recuperação judicial é o último suspiro. Quando você faz esse processo com mais planejamento, de forma estruturada, o resultado é mais positivo não apenas para a empresa como para os credores”, observa.
“Mercado da crise” e o que esperar de 2024
Diante de um cenário de crédito mais restrito, em meio às dificuldades financeiras de pequenas, médias e grandes empresas, foi se abrindo um espaço cada vez maior para o chamado “mercado da crise” – formado por gestoras, consultorias e escritórios de advocacia especializados em recuperação judicial e reestruturação corporativa.
De acordo com um levantamento da Spectra Investments, há pelo menos 39 gestoras independentes que atuam nesse segmento – em 2015, eram apenas cinco. Somadas, essas empresas possuem mais de R$ 13 bilhões em capital disponível para investimento, ante pouco mais de R$ 1 bilhão em 2012. Entre as principais atividades executadas por essas gestoras, estão financiamentos para empresas em recuperação judicial, fundos para compra de precatórios e ajuda para concessão de crédito.
“Historicamente, a recuperação judicial era vista de uma forma muito ruim para as empresas e tinha um péssimo impacto mercadológico. As empresas seguravam ao máximo e, quando começavam, já estavam quase em estágio falimentar”, destaca Renato Scardoa. “O lado positivo desse aumento das recuperações judiciais é que, ao longo do tempo, vemos que a recuperação judicial não é um bicho de sete cabeças.”
Para Max Mustrangi, da Excellance, a tendência para 2024 é a de que o “mercado da crise” continue em franca expansão. “Trimestre a trimestre, os resultados estão piorando para muitas empresas e a conta não fecha. O quarto trimestre deve ser muito ruim em termos de resultado, basta ver o que aconteceu na Black Friday”, afirma.
“Há queda contínua de faturamento e muitas empresas abrirão um buraco de caixa maior ainda e terão de buscar financiamento para girar a operação. O número de recuperações judiciais e falências, em especial no primeiro semestre do ano que vem, tende a continuar aumentando”, projeta Mustrangi.
Renato Scardoa, da S.DS Scardoa e Del Sole Advogados, entende que, pelo menos no caso das grandes empresas, episódios traumáticos ocorridos neste ano podem inibir novos pedidos de recuperação judicial nos próximos meses.
“A não ser que surja algum outro escândalo do balanço, como ocorreu com a Americanas, ou uma atividade econômica infeliz, como no caso da 123 Milhas, não consigo ver outras grandes empresas indo para a recuperação judicial. Até porque algumas delas foram muito traumáticas, principalmente para os bancos, com processos longos. Acredito que essas empresas terão uma maior abertura de negociação direta com as instituições financeiras.”