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Por que o fim do rotativo seria um desastre para o varejo brasileiro

Mexer no parcelado sem juros poderia afetar pequenos comerciantes e derrubar vendas. Bancos e varejo estão em lados opostos nessa discussão

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Imagem de cartões de créditos empilhados uns sobre os outros, em uma mesa - Metrópoles
1 de 1 Imagem de cartões de créditos empilhados uns sobre os outros, em uma mesa - Metrópoles - Foto: Getty Images

Catapultado ao centro da pauta econômica nas últimas semanas, o debate sobre eventuais mudanças no rotativo do cartão de crédito deflagrou uma guerra entre bancos e associações de comércio e serviços, preocupadas com o que consideravam uma ameaça ao parcelamento sem juros, uma das modalidades mais tradicionais do país.

Enquanto os bancos condicionam alterações no rotativo a uma reformulação no modelo de parcelas oferecidas pelo varejo, empresas de maquininhas de cartão e setores do comércio alegam que limites ao parcelado derrubariam as vendas, o que afetaria, principalmente, pequenos e médios comerciantes.

Segundo os bancos, o uso do parcelado é incentivado pelas empresas de maquininhas, que oferecem pagamento antecipado aos varejistas em troca de taxas de desconto. Assim, as instituições financeiras têm de subir os juros no rotativo para compensar a falta de cobrança de taxa em longos parcelamentos. De acordo com o Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV), oito de cada 10 compras parceladas sem juros no Brasil são feitas em até seis vezes.

Um levantamento realizado pelo Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV (FGVcemif) dá a dimensão da importância do cartão de crédito para a economia do país. O volume de transações com cartão no Brasil, em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), saltou de 2,6%, em 2012, para 5%, em 2022, índice superior ao registrado nos Estados Unidos (2,7%). Seis de cada 10 brasileiros utilizam cartão de crédito, acima da média de países ricos (51%).

Juros de 445% ao ano

O rotativo do cartão de crédito é uma linha de crédito pré-aprovada no cartão. Ela é acionada por quem não pode pagar o valor total da fatura na data de vencimento. Em caso de inadimplência do cliente, o banco deve parcelar o saldo devedor ou oferecer outra forma de quitação da dívida, em condições mais vantajosas, em um prazo de 30 dias.

Segundo especialistas, o rotativo do cartão é a linha de crédito mais cara do mercado e deve ser evitada. A taxa média de juros cobrada pelos bancos nas operações com cartão de crédito rotativo ficou em 445,7% ao ano em julho, de acordo com dados do BC. Em maio deste ano, os juros estavam em 455,1%, o maior patamar desde 2017. Em agosto, o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, disse que uma das alternativas que vinham sendo discutidas era a extinção do rotativo. Diante da reação negativa e depois de ter tomado um “puxão de orelha”, o foco da proposta, então, passou para o limite à quantidade de parcelas.

Para André Galhardo, consultor econômico da Remessa Online, restringir o acesso a compras parceladas “seria um crime contra o brasileiro”. “Houve um processo de empobrecimento da população nos últimos anos. Temos uma economia que cresce com dificuldade e passou, assim como o resto do mundo, por um período muito difícil por causa da pandemia. Grande parte das famílias que perderam renda usaram esse recurso de crédito para comprar bens de primeira necessidade”, afirma.

Paulo Solmucci, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), ressalta que o parcelado sem juros “existe há décadas no Brasil” e caiu no gosto popular. “É o produto de preferência absoluta do consumidor brasileiro. Três de cada quatro transações de crédito no comércio são feitas por meio dele”, diz. “Os bancos passaram a ver problema no parcelado sem juros quando apareceu a concorrência das maquininhas, hoje com mais de uma centena de empresas atuando nisso.”

Não é essa a avaliação de Roberto Luis Troster, ex-economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), uma das entidades mais engajadas nas mudanças no parcelado. Para Troster, não é necessário aumentar a concorrência de um mercado já pulverizado, com centenas de instituições financeiras oferecendo crédito.

“Por trás desse embate (entre bancos e varejo), existe uma disputa para ver quem fica com custo e quem fica com risco. Há instituições que não sabem avaliar bem o crédito e colocam a taxa lá em cima”, critica. “É um sistema no qual os bons pagam pelos maus. Isso acaba deteriorando as carteiras de todo o sistema. Se alguns começam a emprestar mal, temos um efeito de diluição de dívidas.”

A economista Carla Beni Menezes de Aguiar, da Fundação Getulio Vargas (FGV), avalia que há distorções no atual modelo que precisam ser corrigidas. “O parcelamento, inicialmente, deveria ser direcionado para um produto ou um bem de valor agregado maior. No entanto, nós tivemos uma distorção desse instrumento, por causa da própria conduta da população e também pela renda mais limitada”, diz. “Criou-se um hábito na população de parcelar tudo. Mesmo quem não precisa acaba parcelando, independentemente da renda.”

“Boom” de cartões e endividamento

De acordo com o BC, entre 2018 e 2022, o número de cartões ativos no país disparou 111%, de 98,9 milhões para 208,7 milhões. Há mais cartões do que brasileiros, que são 203 milhões, segundo dados do Censo Demográfico. A população economicamente ativa do Brasil é de 107,4 milhões.

“A verdade é que os bancos concederam crédito de forma excessiva e pouco responsável. Temos de melhorar a qualidade desse crédito. A inadimplência não tem nada a ver com o parcelado sem juros, mas com o excesso de crédito ofertado”, diz Paulo Solmucci.

O uso abusivo do cartão, de fato, é um dos vilões do endividamento dos brasileiros. Dados da Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e divulgada na terça-feira (5/9), mostram que o cartão lidera o ranking das modalidades de dívida, com 85,5%.

A taxa de endividamento da população ficou em 77,4% em agosto, enquanto o percentual de inadimplentes foi de 30%. Os endividados são aqueles que têm compromissos a vencer, não necessariamente contas atrasadas. Os inadimplentes são os que não pagaram a dívida no prazo.

Parcelado passa ileso na Câmara

Na terça-feira (5/9), a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que determina um teto para os juros cobrados no rotativo do cartão – eles não poderão ultrapassar 100% do montante original da dívida do cliente. Ou seja, o valor a ser quitado poderá, no máximo, ser duplicado e, embora ainda muito elevado, ficará bem abaixo do patamar atual.

O projeto estabelece um prazo de 90 dias para que os bancos definam qual será o patamar exato dos juros do rotativo. Se não houver uma definição nesse período, caberá ao Conselho Monetário Nacional (CMN) deliberar sobre o tema. Em uma vitória para o varejo e as empresas de maquininha, o texto aprovado não mexe no parcelado sem juros. A proposta ainda terá de ser analisada pelo Senado.

“Os bancos continuam esperançosos de que possam criar uma regulamentação restritiva para o parcelado sem juros. Ainda que o Parlamento tenha afastado qualquer mudança, alguns mantêm essa ganância de buscar alguma compensação”, afirma Solmucci.

Roberto Luis Troster, ex-Febraban, classificou o texto aprovado pelos deputados como “mais do mesmo”. “Não vai resolver nada. Essa medida não ataca a raiz do problema, que é o crédito mal precificado no Brasil. Não se sabe se a pessoa é boa ou má pagadora. Ninguém é devidamente informado sobre o seu risco de crédito”, afirma.

Em nota divulgada na quarta-feira (6/9), a Febraban afirmou que a limitação dos juros cobrados no cartão pode diminuir a oferta de crédito no país. “Limites artificiais de juros impactam na oferta de crédito, pois carregam o risco de torná-lo não sustentável. No caso do cartão de crédito, produto que responde por 40% de todo o consumo no Brasil, tetos para os juros no rotativo podem tornar uma parcela relevante dos cartões de crédito inviáveis economicamente, afetando a disponibilidade de crédito na economia”, diz a federação de bancos.

A Associação Brasileira de Bancos (ABBC) afirmou que “o estabelecimento de um teto de juros poderá implicar desdobramentos extremamente contraproducentes, tais como a complexificação de entrada de novos players no mercado, a diminuição do acesso ao crédito e a redução da inclusão financeira”.

A Associação Brasileira de Internet (Abranet), que representa parte das empresas de maquininhas, elogiou a aprovação do projeto. Segundo a Abranet, ao não mudar as regras do parcelado sem juros, os parlamentares “demonstraram compreender a relevância desse modelo para os consumidores, para os lojistas e para a economia brasileira”. “A Abranet acompanhará os próximos passos da tramitação, na certeza de que serão assegurados, também no Senado, os direitos do consumidor e do seu poder de compra”, diz o texto.

Em comunicado divulgado no fim de agosto, um grupo formado por 12 entidades ligadas ao comércio e ao setor de serviços defendeu a manutenção do parcelamento sem juros. “A modalidade é indispensável para a população, comércio e serviços. Do ponto de vista dos consumidores, o parcelamento sem juros é a oportunidade de adquirir um produto ou serviço em condições que se encaixem melhor em seu orçamento. Para o comércio, o parcelamento é uma linha de crédito para capital de giro mais barata e a chance de fidelizar clientes.”

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