Pesquisa exclusiva: o que a geração Z pensa sobre o trabalho
E como as ideias dessa turma sobre o emprego, a saúde mental, a família, as drogas e os relacionamentos afetivos podem mudar o mundo
atualizado
Compartilhar notícia
Pode-se atribuir à geração Z, formada por jovens nascidos entre 1995 e 2010, com idades entre 13 e 28 anos, a introdução de dois termos no vocabulário do mercado de trabalho mundial. São eles “quiet quitting” e, mais recentemente, “resenteeism”.
O primeiro significa algo como “demissão silenciosa”. Aplica-se quando as pessoas se recusam a trabalhar além do básico, em benefício da qualidade de vida e da saúde mental. A outra palavra quer dizer “ressentimento” e designa uma insatisfação crônica com a labuta, embora o profissional não abra mão do emprego. Ele permanece no posto, mas ressentido.
Óbvio que tanto o conceito de geração como os dois termos citados são genéricos demais e, por isso, suscetíveis a equívocos. Ainda assim, eles refletem em grande medida a relação tumultuada que esses jovens, quando ingressam no mercado, mantêm com empresas e empregadores.
E por que é assim? Para responder essa pergunta, o Instituto Travessia realizou uma pesquisa qualitativa com um grupo de nove jovens, com idades entre 19 e 27 anos. Eles moram em São Paulo, um deles na região metropolitana, e pertencem às classes B e C, com renda familiar entre R$ 4 mil e R$ 10 mil.
Nesse tipo de levantamento, as pessoas discutem com total liberdade os mais diversos assuntos. A conversa é mediada por um especialista. E qual o objetivo da análise? Dar voz, no Dia do Trabalho, aos integrantes da geração Z para que digam o que pensam sobre o tema, além de tópicos como saúde mental, família, drogas, relacionamentos, política, o Brasil e o mundo. A seguir, um resumo da visão dos “zês” a respeito desses tópicos.
Trabalho
Se as empresas têm queixas contra a geração Z (vide “quiet quitting” e “resenteeism”), a recíproca é especialmente verdadeira. Entre os jovens, abundam críticas sobre o mundo corporativo, classificado como pouco ético, burocrático, repleto de preconceitos e misógino. Trabalhar, para a maior parte dessa turma, é um fardo. Inevitável, mas um fardo.
“Os jovens percebem que existe muita coisa errada nas empresas e isso é algo muito forte para eles”, diz Renato Dorgan Filho, sócio e analista do Travessia, responsável pela mediação da conversa. “As mulheres, por exemplo, se queixam de assédios tanto sexuais como morais constantes. E os rapazes do grupo endossam essa realidade.”
Eles acreditam que a suposta falta de envolvimento da geração Z com o trabalho é apenas uma meia verdade. A outra metade encontraria explicação no dia a dia de “empresas tóxicas”. Diz uma integrante do grupo (os nomes serão preservados), de 24 anos, que atua na área administrativa: “Enquanto eu trabalhava das 7 às 23 horas, estava tudo certo. Quando eu disse para a minha chefe que cumpriria o horário das 7 às 17 horas, que já era bem amplo, passei a não servir mais.”
Daí, diz a moça, a opção de mudar constantemente de emprego – sem dó, ou mesmo, sem olhar para trás. “Isso é ruim, porque prejudica a estabilidade financeira”, diz. “Mas prefiro pular de galho em galho a ficar num lugar onde não me sinta bem.”
Entre os integrantes do grupo, ninguém aposta que irá se aposentar nas empresas onde trabalham. Não há a perspectiva e nem sequer o desejo de que isso aconteça. “Já sei que não vou conseguir”, diz um rapaz de 27 anos, que reside em São Caetano, na Grande São Paulo, o mais velho da turma de entrevistados. Ele trabalha na área de informática e acrescenta, entre descrente e jogoso: “Aliás, acho que o INSS nem vai existir quando esse momento chegar”.
Mulheres no trabalho
Sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no universo corporativo, além de assédios sexuais frequentes, diz uma estudante de Medicina, de 25 anos: “Em geral, se uma mulher e um homem estão falando, as pessoas dão mais atenção ao homem. Observo isso o tempo todo.” Outra integrante do debate, de 22 anos, a única casada, acrescenta: “Nas entrevistas de emprego, ainda me perguntam se pretendo engravidar e quando”.
Dorgan Filho observa que o grupo se divide entre jovens que fizeram – ou fazem – curso superior e aqueles que pararam de estudar no Ensino Médio, demarcando uma das diferenças entre as classes B e C. Mesmo entre os que concluíram a faculdade, nem sempre é possível trabalhar na área dos cursos realizados. Isso também pode aumentar a insatisfação com os empregos atuais. “Além disso, apenas três participantes da pesquisa têm interesse em empreender e, mesmo assim, ele não se mostrou tão intenso”, afirma o analista. “Isso embora muitos digam que não querem que ninguém mande neles.”
Dependência dos pais
Se a independência financeira pode ser difícil de ser conquistada em um mercado de trabalho adverso, uma das alternativas usadas pela geração Z para resolver o problema é bastante nítida. Trata-se da dependência, principalmente em relação aos pais. Entre as pessoas do grupo, apenas uma delas não vive com a família. A maior parte observa que não teria nem sequer condições de bancar as despesas de uma casa, embora quatro deles tenham entre 24 e 27 anos.
Estabilidade, não luxo
A totalidade desses jovens, nota Dorgan Filho, afirma que não busca a fortuna, mas alguma forma de estabilidade financeira, aliada ao bem-estar, ainda que não exponham com clareza o que isso significa. “Mas, quando perguntei se eles preferem a riqueza à qualidade de vida, todos escolhem a segunda opção”, diz. “O dinheiro seria uma forma de garantir essa condição estável, mas não o luxo, necessariamente. Nesse contexto, um deles citou: ‘Não quero ser rico e frustrado’.”
Saúde mental
Na conversa, que durou quase três horas, um tema chamou a atenção do analista do Travessia. Foi a saúde mental. Mais da metade do grupo afirmou sofrer – ou ter sofrido – de algum tipo de transtorno, como ansiedade e depressão. “Dois ainda tomam medicamentos controlados e vários outros passaram por tratamentos com psicólogos ou psiquiatras”, afirma.
Uma das moças, a estudante de Medicina, afirmou: “Tenho ansiedade e ela foi diagnosticada”, disse. Outro componente da turma, arrematou: “Li em algum lugar que esse tipo de problema acontece com pessoas da nossa geração porque temos muitas opções. E, quando olhamos para todas elas, percebemos que não vamos dar conta de tudo”, afirma. “Isso não acontecia com as pessoas que nasceram nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo.”
Família
A relação desses jovens com os pais está longe de ser pacífica, como é próprio de todas as gerações, mas a maioria deles – na amostra da pesquisa, havia apenas uma exceção (justamente, a moça que não mora com a família) – não mantém confrontos incontornáveis dentro de casa. “Em geral, eles admiram os parentes por serem batalhadores, honestos, pessoas que lutaram por uma vida melhor”, diz Dorgan Filho. “Mas isso não quer dizer que não tenham críticas a fazer sobre os pais.”
Não mesmo. E os inúmeros reparos focam, notadamente, em temas como a visão de mundo, os preconceitos (de todos os tipos, o que inclui os relacionamentos afetivos) e ao “conformismo” com que tocaram suas vidas. “Eles acham que os pais aceitaram as derrotas e embarcaram num modo de vida árido além do que deveriam”, afirma o técnico. “Isso resulta, em boa parte dos casos, num limite claro na comunicação entre pais e filhos, mesmo que o ruído resultante dessa situação não seja tão estridente. Afinal, eles continuam morando com a família.”
Costumes
Nenhum dos participantes da pesquisa manifestou qualquer restrição a relações homoafetivas. O contrário seria inaceitável na visão da maioria deles. “Eles também demonstram não ter muita paciência com hipocrisias”, diz o analista. “O grupo espera viver de acordo com a sua visão e quer que os relacionamentos amorosos e afetivos sejam respeitados. A maioria é monogâmica e espera casar, embora isso não seja uma necessidade premente.”
Pelo menos dois integrantes afirmaram que não querem ter filhos e outros dois, no caso, mulheres, afirmaram que podem tê-los, mas não consideram a maternidade algo essencial para suas vidas.
Quase todos são a favor da liberação da maconha. “Eles acreditam que não adianta nada tentar impedir o consumo para coibir seu uso”, nota Dorgan Filho. “Ao mesmo tempo, eles não aceitam bem o uso de outros tipos de drogas, como a cocaína.”
Duas jovens tentaram aderir a uma dieta vegana. Uma delas disse que desistiu porque a mudança se mostrou “cara demais” e exigia “tempo demais” para o preparo de uma alimentação adequada, capaz de suprir o corte do consumo da proteína animal. A outra, um estudante de Biomedicina, com 22 anos, ofereceu um motivo mais prosaico: “Tive vontade de comer um churrasquinho mesmo”.
Política
A desilusão com a política é total e irrestrita. Nenhum dos participantes do grupo a vê como um instrumento de transformação da realidade social, econômica ou cultural do país. Ao contrário, a política seria, na leitura dessas pessoas, um instrumento para perpetuar a realidade em condições adversas ao desenvolvimento. “Mas, na prática, eles se mostram especialmente desconectados em termos políticos e mal sabem como se definir ideologicamente”, diz Dorgan Filho.
A maioria, porém, afirmou ser de centro-esquerda. Seis deles votaram em Lula, mas, para a maior parte desse subgrupo, por “falta de opção”. Dois anularam o voto e uma jovem escolheu Bolsonaro. Num quadro de acentuada polarização, as eleições presidenciais foram uma fonte farta de conflitos com parentes. Todos, contudo, afirmam que evitaram discussões. “‘Tá bom, tá bom’, era o que eu dizia quando meu pai tentava me convencer a votar no candidato dele, no caso, Bolsonaro”, diz a jovem que cursa o quarto ano de Medicina.
Ídolos
Se o vazio em torno da política é uma característica, a ausência de ídolos é outra constante. Não sem esforço, o mediador do debate, literalmente, arrancou alguns nomes dos integrantes do grupo, quando lhes perguntou quais eram as pessoas que admiravam. “Martin Luther King”, disse um jovem, negro, de 22 anos, que faz cursinho pré-vestibular e pretende ingressar na faculdade de Engenharia. Ele reside no extremo sul da capital paulistana.
Quebrado o gelo, surgiram outros nomes de ídolos, numa breve lista que foi de Jesus a Einstein, passando por Sebastião Salgado (citado por um rapaz ligado ao setor de audiovisual) e o médico Drauzio Varella (pelo livro “Estação Carandiru”), até Neymar (cujo fã é um rapaz de 19 anos, o mais jovem da turma) e a influenciadora digital Virgínia Fonseca. Uma das participantes mencionou a mãe. “A maioria citou nomes ligados ao universo de cada um”, nota Dorgan Filho. “Dai o quadro que resultou das respostas ser tão fragmentado e diverso.”
Consumo
Na avaliação do analista do Travessia, outra característica do grupo é o apego o consumo. “Os interesses, nesse caso, variam entre roupas, comidas especiais, games e viagens”, diz. Mas há uma peculiaridade em relação aos mais velhos, em especial aos baby boomers, nascidos entre 1945 e 1964, e aos integrantes da geração X, de 1965 a 1981. “Ninguém tem carro e esse tipo de bem não parece fazer grande falta”, afirma o técnico. “Por motivos econômicos ou opção, todos se deslocam de metrô, do qual reclamam da lotação, ou Uber, quando podem pagar.” Sobre esse tema, acrescentou o rapaz de 27 anos, que trabalha com informática: “Mas dá para pensar em pagar R$ 70 mil no carro mais barato do mercado?”.
O problema do endividamento é um freio no consumo, porque ronda a realidade da maioria dos entrevistados. Não está, contudo, diretamente relacionado a eles, mas, sim, a “parentes pendurados”. Esses jovens têm medo de contrair dívidas.
Lazer e redes sociais
Os programas mais comuns de lazer incluem cinemas, parques, atividades físicas (principalmente para as mulheres). As baladas são bem-vindas, mas raras, uma vez que “muito caras”. “Quem tem grana para pagar R$ 200 todo fim de semana só para entrar em um bar?”, questiona uma estudante de Direito, de 21 anos, que mora na zona leste paulistana.
Todos usam redes sociais, principalmente o WhatsApp. O YouTube é classificado como uma “ferramenta de estudos” e Spotify, fonte de músicas. O TikTok é menosprezado e ironizado. A maioria assina serviços de streaming, principalmente a Netflix.
A TV aberta já foi esquecida, assim como o rádio. Os podcasts, no entanto, principalmente os de notícias, são citados como fontes de informação. Eles se consideram vacinados contra fake news. “Com certeza, não é a geração Z que cai nesse tipo de mentira, divulgada nas redes sociais”, diz Dorgan Filho.
O analista define como “surpreendente” o fato de muitos desses jovens afirmarem que são leitores assíduos – e no formato tradicional, de livros em papel. Entre os títulos que estão sendo lidos, há grande variedade. Eles incluem o “Manual de Assassinato para Boas Garotas”, de Holly Jackson, “As Crônicas de Nárnia”, a série de C.S. Lewis, e clássicos “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, e “Crime e Castigo”, de Dostoiévski.
Brasil
Para os integrantes da geração Z, a visão sobre o Brasil não é menos desalentadora do que a avaliação feita sobre a política. “Caro, violento, perigoso”, define uma das participantes da pesquisa, com 21 anos, que mora em São Mateus, na zona leste paulistana. “Para mim, o termo ‘difícil’ resume tudo”, arremata o técnico de informática, de 27 anos.
O país que já recebeu atributos como “lindo e trigueiro” hoje é definido por esses jovens com adjetivos como “racista e misógino”. A inflação, considerada “muito alta”, e empregos que exigem “qualificação, mas pagam pouco” estão entre os outros entraves enumerados.
O que os preocupa
Entre os temas que preocupam esses jovens, estão a desigualdade, a saúde mental, a pobreza, a intolerância e o que definem de forma um tanto vaga como a “luta pelo poder”, que resulta em um amplo e nacional “cada um por si”. O meio ambiente e outra fonte de temores, embora a maioria não enxergue uma solução factível para o problema. “Na prática, eles não acreditam que a humanidade vai salvar o mundo”, afirma Dorgan Filho. “Acham que a economia, no caso, predatória, está acima da preservação da natureza na escala de prioridades do planeta. Para alterar essa situação, dizem que seria necessário repensar a sociedade.”
Um mundo diferente
O analista do Travessia observa que, apesar de uma visão pouco entusiasmada, para dizer o mínimo, sobre o futuro do país e do mundo, a geração Z possui características que a distinguem, positivamente, das anteriores. “E daqui a alguns anos, quando ocuparem cargos de decisão na sociedade, esses traços comuns a muitos deles podem fazer a diferença”, afirma. “Em geral, eles demostram ter um sentido de ética bastante pronunciado e são menos preconceituosos em comparação aos mais velhos. As mulheres, em franca ascensão, são fortes e maduras, ao contrário dos rapazes que, em muitos casos, parecem adolescentes. Isso tudo pode dar corpo, em algumas poucas décadas, a um mundo diferente.”