O que significa a crise contínua do varejo para a economia brasileira
Inflação deu uma trégua e projeções para o PIB vêm subindo, mas o varejo, um dos setores que mais emprega no país, segue em situação difícil
atualizado
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Um dos setores mais importantes da economia brasileira, o varejo continua patinando. Depois do tsunami do início do ano, com a eclosão da crise na Americanas que afetou outras empresas do segmento, o comércio varejista parecia ter esboçado uma recuperação em março, crescendo acima das expectativas. Em abril, no entanto, os resultados decepcionaram.
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram estabilidade do varejo em abril, com leve oscilação positiva de 0,1% em relação ao mês anterior, abaixo das projeções do mercado.
Das oito atividades pesquisadas, apenas três tiveram resultado positivo. O varejo ampliado – que inclui veículos, motos, peças e material de construção – interrompeu uma sequência de quatro altas consecutivas e recuou 1,6%.
Embora os principais indicadores econômicos estejam melhorando, com arrefecimento da inflação, queda do desemprego e revisões para cima das projeções do Produto Interno Bruto (PIB), a dificuldade do varejo brasileiro de superar sua crise acende um alerta e não deve ser menosprezada. O assunto f0i tema de reunião do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com representantes do setor, em Brasília.
Segundo um levantamento da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), o comércio varejista é responsável por um de cada quatro empregos com carteira assinada no Brasil. Em 2021, o varejo restrito movimentou R$ 1,99 trilhão, o que correspondeu a 22,9% do PIB. O varejo ampliado, por sua vez, superou R$ 2,41 trilhões (27,7%).
“O varejo tem enorme importância no ecossistema da economia brasileira, assim como a indústria e os serviços. Precisamos de gente para comprar, para que o varejista venda mais, para que a indústria fabrique mais, para que a indústria agrícola possa produzir mais. É uma roda, que, infelizmente, muitas vezes se torna uma roda de espiral negativa”, afirma Caio Camargo, especialista em varejo.
“Muitas pessoas que estavam pensando em comprar carro deram um passo para trás e preferiram esperar o governo anunciar as medidas para reduzir os preços dos automóveis”, exemplifica Camargo. “Se a pessoa desiste de comprar o carro, para a venda. Se para a venda, para a produção. Se para a produção, as pessoas terão de ser mandadas embora. Se as pessoas são demitidas, ficam com menos dinheiro. Gente com menos dinheiro compra menos.”
Famílias endividadas
Os juros altos e a dificuldade de acesso ao crédito prejudicam o setor, especialmente o comércio de bens de maior valor, mas o grande problema tem sido o endividamento das famílias. Enquanto a inadimplência se mantiver em patamares elevados, diz Camargo, o varejo dificilmente decolará.
“Não são os juros altos que estão impedindo a pessoa de comprar uma geladeira, um carro ou financiar um apartamento. O que está acontecendo, na prática, é que as famílias não estão conseguindo pagar suas contas de subsistência. Hoje, as pessoas têm de fazer escolhas, um verdadeiro malabarismo para se equilibrar”, afirma.
De acordo com dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), mais de 78% das famílias brasileiras tinham algum tipo de dívida (em atraso ou não) em abril. O percentual de inadimplentes (os que têm contas ou dívidas atrasadas) foi de 29,1%.
“Muitas famílias recorreram a empréstimos para ter suas contas de subsistência pagas. Por mais que, neste momento, não haja grandes notícias ruins no horizonte econômico, as famílias endividadas vão levar um tempo para se reerguer”, afirma Camargo.
No início de junho, o governo federal lançou o programa Desenrola, de renegociação de dívidas, que pode beneficiar até 70 milhões de pessoas, segundo projeções do Ministério da Fazenda. Mas há dúvidas se ele, por si só, será capaz de reduzir significativamente a inadimplência no país.
Desaceleração à vista
Depois de “andar de lado” em abril, a tendência apontada pelos especialistas ouvidos pelo Metrópoles é que a desaceleração do comércio varejista se cristalize nos próximos meses – o que, inevitavelmente, terá impacto sobre a economia brasileira como um todo.
“Em nossa análise, focamos nos resultados do varejo ampliado (-1,6%), que tende a acompanhar melhor o comportamento dos componentes do PIB”, diz Claudia Moreno, economista do C6 Bank.
Apesar de enxergar “certa resiliência” de alguns segmentos do comércio, Moreno projeta “desaceleração à frente”. “Os juros altos e a desaceleração da economia global devem continuar impactando o desempenho do varejo, especialmente os segmentos sensíveis a crédito”, afirma.
Marco Caruso, economista-chefe do Banco Original, também enxerga obstáculos no caminho do varejo, principalmente nos itens mais dependentes de crédito.
“Olhando à frente, o encarecimento do crédito e o alto comprometimento de renda das famílias devem pesar sobre os itens de maior valor agregado”, avalia. “Por outro lado, o mercado de trabalho resiliente, em um ambiente de arrefecimento da inflação e transferências de renda por parte do governo, pode dar alguma sustentação ao varejo restrito.”
Para Caio Camargo, a tão sonhada retomada do varejo “não virá sem algo mais concreto que dê maior poder de compra às famílias”, para além do Desenrola. “O varejista brasileiro aprendeu a navegar na crise, com o mar revolto. O que não pode é o mar ficar se revoltando permanentemente. Aí o sujeito perde o leme.”