Milei quer o fim do Mercosul: o que está em jogo para o Brasil
Para especialistas, setores da indústria podem sofrer com o fim do bloco, mas, para a economia do país, em geral, ele não deixará saudades
atualizado
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A promessa de abandonar o Mercosul entrou para a lista dos “top ten” momentos mais estridentes da campanha do presidente eleito da Argentina, Javier Milei. Desde então, a pergunta passou a ser qual seria o impacto para a economia brasileira se ele cumprisse a ameaça e, com isso, o bloco fosse demolido por essa espécie de Brexit milongueiro.
Para especialistas, embora o Mercosul padeça de ineficiências tão notórias quanto históricas, haveria baque e ele iria se concentrar em setores como o têxtil e o calçadista, além de comprometer a operação de cadeias produtivas, como seria caso da indústria automotiva. Além disso, a mudança lançaria a pá de cal definitiva sobre o acordo de livre comércio com a União Europeia (UE), discutido há mais de duas décadas.
Sem Argentina, sem bloco
Em uníssono, os técnicos afirmam que, na prática, a saída dos argentinos enterraria o Mercosul, criado em 1991, há 32 anos. “Hoje, o bloco é formado basicamente por Brasil e Argentina”, diz Emanuel Ornelas, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EESP). Isso embora também façam parte do grupo o Uruguai e o Paraguai, além da Venezuela, suspensa desde 2016. O ingresso da Bolívia está em processo de ratificação pelos parlamentos dos países membros.
O ano de 2021, data do último dado disponível com detalhamento razoável, oferece uma boa indicação do peso de argentinos e brasileiros no bloco. A participação do Brasil nos negócios do Mercosul daquele ano foi de 44% do total. O país foi seguido pela Argentina, com 37%. O Paraguai ficou com 11% e o Uruguai, com 8%. Nesse caso, os principais produtos comercializados foram energia elétrica, soja e veículos para o transporte de mercadorias. Ou seja, somadas, as empresas brasileiras e argentinas representaram 81% das transações.
Cadeias rompidas
Uma vez sem bloco, o economista Rodrigo Zeidan, professor da New York University Shanghai, na China, e da Fundação Dom Cabral (FDC), acredita que haveria perda expressiva da eficácia em algumas cadeias produtivas. “Na indústria automobilística, por exemplo, é possível produzir uma peça numa cidade do Rio Grande do Sul e outra, em Buenos Aires, buscando o menor custo”, diz. “Ao ignorar as barreiras tarifárias que existiam antes do bloco, houve um aumento da eficiência no comércio intra-indústria. Sem o acordo, isso acaba.”
Calçados
Com o fim do bloco, outros setores teriam seus problemas de competitividade agravados. Isso porque muitos produtos brasileiros entram na Argentina sem pagar tarifas. Esse é o caso dos calçados. Na inexistência do Mercosul, esses produtos passariam a ser taxados em 35%, o que mudaria as relações comerciais entre os países. Entre janeiro e outubro, a Argentina importou 12,9 milhões de pares de sapatos brasileiros, em negócios que movimentaram US$ 203 milhões.
Tecidos
A mesma situação aplica-se, por exemplo, à indústria têxtil brasileira. Os produtos desse segmento também não são taxados na Argentina, que é o principal mercado para os brasileiros. As vendas anuais para a Argentina representam cerca de US$ 250 milhões. “O fato é que a eliminação das tarifas internas criou relações de comércio fortes e de longa data entre empresas do Mercosul, o que favorece os negócios”, diz Ornelas, da EESP FGV.
Acordo Mercosul-União Europeia
Além disso, notam os especialistas, sem a Argentina, o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia iria para o vinagre. Uma versão inicial do compromisso foi assinada em 2019, mas as discussões que precederam esse momento se arrastaram por duas décadas.
“Com a dissociação de economias como a americana, a europeia e a chinesa, as cadeias globais de valor estão se rearranjando pelo mundo e a União Europeia é o maior investidor nas economias sul-americanas”, diz Zeidan, da FDC. “Seria hora de estimular investimentos para revitalização da nossa indústria. Mas, infelizmente, a chance de isso acontecer é mínima.”
E a “chance é mínimas”, nota o especialista, não apenas por causa da ameaça de Milei. Há entraves em relação ao acordo que ainda precisam ser superados, embora nas últimas semanas a possibilidade da conclusão do tratado tenha sido ventilada por pessoas que participam das negociações.
Objeção da França
Entre os empecilhos vigentes, Zeidan destaca que, em 2019, na esteira do avanço do desmatamento da Amazônia, a França exigiu que o Brasil assumisse compromissos ambientais adicionais ao acordo. Tal demanda, contudo, foi interpretada como uma ação protecionista do governo francês. Nesse caso, a questão ambiental estaria sendo usada como pretexto para melar o compromisso comercial e, com isso, evitar a exposição do setor agrícola francês ao agronegócio brasileiro.
Mas não é só. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse recentemente que quer fechar o acordo na primeira semana de dezembro. Depois disso, o compromisso ainda terá de ser ratificado por todos os parlamentos de países envolvidos, o que inclui os quatro membros do Mercosul e os 27 da UE. Na avaliação de Zeidan, porém, o governo brasileiro e boa parte do empresariado nacional não têm como premissa o fato de a abertura do mercado nacional ser um fator de dinamismo da economia local.
Não deixará saudades
Ainda que o eventual fim do Mercosul possa comprometer o desempenho de setores da indústria nacional, os especialistas ressaltam que ele não deixaria saudades sob o ponto de vista do desenvolvimento econômico do Brasil.
Na avaliação de Lívio Ribeiro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), embora Milei exagere no tom, o Mercosul não funciona bem. Ribeiro define o bloco como “desbalanceado”, com participação concentrada no Brasil e na Argentina. Nota ainda poucos avanços em mais de 30 anos de existência do acordo, que considera “contaminado” por visões ideológicas equivocadas, tanto à direita como à esquerda do espectro político. “Hoje, o Mercosul produz mais desvios de comércio do que ganhos de comércio”, diz. “Isso porque privilegia mecanismos de proteção da indústria em vez de estimular trocas comerciais mais amplas.”
A opinião é compartilhada por Ornelas, da EESP FGV. “O Mercosul é uma amarra. O acordo criou uma união aduaneira e não uma área de livre comércio”, diz. “Isso quer dizer que os países que fazem parte do bloco têm uma política comercial comum, marcada por tarifas internas baixas, mas por externas altas. Algo que cria uma proteção para as empresas regionais e limita os eventuais ganhos com negociações com outros países, blocos e regiões.” Desde 2021, o Uruguai tenta fechar um acordo comercial com a China, mas tais tentativas esbarram em obstáculos criados pelo Mercosul.
Isolacionismo
Zeidan da New York University Shanghai e da FDC, observa que a lógica isolacionista do Mercosul também se aplica à perfeição ao Brasil. Ele nota que o país é o mais fechado do mundo para o comércio internacional, à exceção do Sudão. O economista acrescenta que a relação média entre a soma de exportações e importações e PIB, de 2010 a 2022, do Brasil é inferior a 28%. A média mundial fica em 92% e a mediana, em 77%. Para países em conflitos, o número é 51%. Em nações pobres e altamente endividados, ele bate nos 56%. Na América Latina, alcança 47% e, em países de renda média, 48%.