“Ideologia não pode interferir” no agro, diz ex-ministro de Lula
Ministro da Agricultura do 1º governo Lula, Roberto Rodrigues critica fatiamento da pasta e diz que “visão ideológica” não pode ditar gestão
atualizado
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Há 20 anos, o produtor rural e engenheiro agrônomo Roberto Rodrigues assumia o Ministério da Agricultura do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2003.
No centro do poder, em Brasília, o então ministro aproximou o agronegócio de Lula, apesar da forte resistência inicial, motivada pela histórica ligação entre o PT e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – grupo que invadiu quatro fazendas no sul da Bahia na última semana.
Passadas duas décadas, o avanço do agro brasileiro é notável. A safra de grãos cresceu de 120 milhões para 310 milhões de toneladas, uma expansão de quase 160% no período. A área plantada foi de 43 milhões para 76 milhões de hectares. A projeção para 2023 é a de que a safra supere 300 milhões de toneladas pela primeira vez na história.
O país também mudou em muitos aspectos nesse período – em outros, nem tanto. Desde o dia 1º de janeiro de 2023, Lula dá expediente no Palácio do Planalto, cumprindo seu terceiro mandato presidencial. Mas o forte apoio do agro à candidatura de Jair Bolsonaro, em 2018 e 2022, mostra que a relação do setor com o PT, hoje, não é das melhores.
A decisão do governo de retirar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) do guarda-chuva do Ministério da Agricultura e transferir o órgão para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, comandado pelo petista Paulo Teixeira, foi mal recebida. Assim como a provável indicação de Edegar Pretto, candidato derrotado do PT ao governo do Rio Grande do Sul, para a presidência da Conab. Pretto é ligado ao MST gaúcho.
“A ideologia não pode interferir nas políticas públicas de maneira deletéria”, afirma Rodrigues, aos 80 anos, em entrevista ao Metrópoles. “O que me importa é que esses líderes vejam o setor como uma alavanca para o desenvolvimento do Brasil e não olhem para esse ou aquele pedaço do país, para esse ou aquele segmento mais radical, com uma visão ideológica.”
Na conversa com a reportagem, Rodrigues, que hoje coordena o Centro de Agronegócio na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV), condena as invasões do MST na Bahia, critica o “fatiamento” do ministério, que foi desmembrado pelo atual governo, fala sobre a suspensão das exportações de carne bovina para a China, defende mudanças no protocolo comercial firmado em 2015 com o país asiático e diz que o avanço da tecnologia e a “conquista do Cerrado” foram fundamentais para o sucesso do agro brasileiro.
Leia os principais trechos da entrevista de Roberto Rodrigues ao Metrópoles:
As exportações de carne bovina do Brasil para a China foram suspensas após o registro do “mal da vaca louca” no Pará. Testes mostraram que se tratou de um caso atípico, sem risco de transmissão para humanos. Como o senhor avaliou a postura do governo brasileiro nesse episódio?
A postura do governo foi a mais correta porque segue o protocolo entre Brasil e China firmado em 2015. O problema é o protocolo em si, mas, uma vez assinado, o ministro tem a obrigação de cumprir a regra. Eu já imaginava que se tratava de um caso atípico porque era um animal de idade avançada, criado em pasto, que não consumia nenhuma ração de origem animal, que é o que produz o príon da “vaca louca” clássica. Só poderia mesmo ser um caso atípico, caracterizado pelo envelhecimento do animal. Seria algo totalmente fora do comum que houvesse um caso clássico naquela região, naquelas circunstâncias. Caracterizado, efetivamente, como um caso atípico, nossa expectativa é que a China rapidamente retome as importações.
O ex-ministro da Agricultura Antônio Cabrera defendeu, em entrevista ao Metrópoles, a revisão do acordo entre Brasil e China que determina a interrupção imediata dos embarques de carne bovina após o registro do “mal da vaca louca”. O que o senhor pensa sobre essa cláusula de autoembargo?
Eu também defendo a revisão da cláusula do autoembargo. O exame é muito rápido. Em pouco tempo, como se viu agora, nós conseguimos descobrir se é um caso atípico ou clássico. Os protocolos internacionais exigem uma avaliação de terceiros, como o laboratório do Canadá que ficou encarregado desse trabalho. Se fosse caracterizado como um caso clássico de “vaca louca”, a suspensão deveria ser aplicada, tudo bem. Para um caso atípico como esse, realmente não faz sentido suspender as exportações.
Segundo projeções do IBGE, a safra agrícola de grãos no Brasil deve bater recorde em 2023 e superar 300 milhões de toneladas. Como foi possível para o agronegócio brasileiro chegar ao patamar atual?
Eu gosto muito de usar a economia como um ponto de partida para entendermos o sucesso do agro no Brasil. O Plano Collor, em 1990, foi um grande esforço de combate à inflação, que fracassou, mas deu a base para o Plano Real, em 1994. Nesses 30 anos, a área plantada com grãos no Brasil cresceu mais de 100%, enquanto a produção quadruplicou, subindo 420%. O centro do progresso brasileiro foi a produtividade. Eu sou produtor rural. No início dos anos 1990, mais da metade da minha renda vinha de aplicação financeira. O meu esforço era muito maior em ter um bom gerente de banco do que um bom agrônomo. Qualquer tecnologia que você compra implica em aumento de custo, investimento. Se você aplica o seu dinheiro, não gasta nada. O Plano Collor e, logo depois, o Plano Real mudaram esse conceito. Com a economia estabilizada, o produtor rural foi obrigado a aumentar a produtividade. Se você olhar os gráficos de crescimento da produção, de 1994 para cá, eles são espetaculares. É um crescimento espantoso. Então, a maior razão para esse avanço é a tecnologia, campo em que demos um grande salto nas últimas décadas. Outra questão que ajudou muito foi a conquista do Cerrado. Era uma terra ácida, que não tinha matéria orgânica, não retinha umidade… Era considerada uma terra indesejável. Criada nos anos 1970, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) impulsionou esse desenvolvimento, com tecnologias que permitiram um avanço espetacular no Centro-Oeste. Até então, a agricultura era costeira. O consumo estava concentrado nas grandes cidades mais próximas da costa, no Sudeste, no Nordeste… O terceiro ponto são as políticas públicas. O crédito melhorou e tivemos uma série de programas importantes que levaram a uma profissionalização dos produtores rurais, que hoje são muito mais técnicos e têm maior noção de gestão moderna.
O senhor foi ministro da Agricultura no primeiro mandato de Lula, entre 2003 e 2006. O que achou da escolha de Carlos Fávaro para comandar a pasta?
Eu gosto do Carlos Fávaro, o conheço há mais de 20 anos. Ele reúne algumas características importantes que lhe dão condições para ser um bom ministro. Primeiro, é agricultor. Conhece o setor e sabe como funciona. Segundo, foi presidente da Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), a entidade mais importante da agricultura brasileira em termos setoriais. Ele conhece a relação entre o setor privado e o governo. Além disso, foi vice-governador do Mato Grosso, que é o estado agrícola mais importante do Brasil. Também foi secretário do Meio Ambiente, conhece bem a máquina pública. Foi senador da República, conhece o Parlamento e as relações entre Executivo, Legislativo e o setor privado. E também foi o coordenador do programa de transição do governo. Tudo isso dá a ele um capital relevante como ministro. No entanto, houve um fatiamento do Ministério da Agricultura, que foi dividido em quatro: Agricultura, Desenvolvimento Agrário, uma parte dos programas para o Meio Ambiente e outra parte para a Pesca. Isso pode ser ruim. Ainda mais importante do que retomar a unidade da agricultura é ter uma coordenação do governo. Grande parte dos trâmites no ministério está fora da Agricultura. Por exemplo, os acordos comerciais. Se não houver acordos bilaterais ou multilaterais com países grandes, com grandes consumidores, podemos ficar na mão. Imagine se a China ficasse um ano sem comprar carne da gente. Seria um desastre. Defendo uma reorganização do Itamaraty. A diplomacia é muito importante para a inserção comercial do Brasil lá fora. O ministro da Agricultura tem de estar bem alinhado com o Itamaraty, com o Ministério do Planejamento, com o Ministério de Indústria e Comércio, com o Ministério do Meio Ambiente.
O senhor considera que houve um retrocesso com a retirada da Conab do Ministério da Agricultura? E como avalia a possível indicação de Edegar Pretto (PT-RS), ligado ao MST, para presidir o órgão?
Eu não gosto de falar de política, mas posso falar de gestão. A Conab é um organismo de inteligência fundamental para a agricultura. Os dados sobre levantamento de safras e a formulação de políticas públicas são a base da agricultura. Seria muito importante que esse órgão ficasse no Ministério da Agricultura, no qual há essa formulação de políticas de produção. Quanto a quem será o presidente, não acho que seja tão relevante. Mas a ideologia não pode interferir nas políticas públicas de maneira deletéria. Afinal de contas, o agronegócio brasileiro representa parcela expressiva do nosso PIB. É o setor responsável pelo saldo comercial brasileiro, que só é positivo por causa do agronegócio. O agronegócio tem um papel de caráter econômico e social extraordinário. Também funciona como um agente de segurança alimentar global. Sem falar na questão energética. É álcool, é biodiesel, é o biometano produzido nas granjas brasileiras. O agro brasileiro tem um papel muito relevante no mundo. Eu não me importo com quem será o presidente de qualquer órgão ou quem será o ministro. O que me importa é que esses líderes vejam o setor como uma alavanca para o desenvolvimento do Brasil e não olhem para esse ou aquele pedaço do país, para esse ou aquele segmento mais radical, com uma visão ideológica, parcial. É preciso olhar para o agro e dimensionar a grandeza que o setor tem para o país.
O MST invadiu quatro fazendas no sul da Bahia e há lideranças do movimento que defendem novos atos no mês que vem, o chamado “abril vermelho”, em defesa da reforma agrária. O senhor teme que haja uma onda de invasões no campo?
Minha avaliação é sobre o que aconteceu. Sobre o que vai acontecer, eu não sei. Espero que isso não signifique mais invasões. A reação do governo estadual foi bastante ativa contra as invasões. Considero essa situação um absurdo. Sou contra tudo o que é ilegal. Sou contra desmatamento ilegal, contra incêndio criminoso, contra garimpo clandestino, contra os atos violentos de 8 de janeiro. Espero que essas invasões sejam devidamente apuradas. Os governos estaduais estão fazendo isso e o governo federal precisa fazer também. Não tem cabimento invadir terra. Hoje, você conversa com gente das empresas ligadas ao agro e falta mão de obra, falta trabalhador qualificado. Tem emprego para todo mundo, não acho que seja correto invadir terra. É ilegal e ponto final.
O agronegócio apoiou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas últimas eleições. Como está a relação atual entre o setor e o governo Lula?
Eu não quero falar de política, eu não entendo de política. Como fui ministro do Lula, qualquer coisa que eu diga pode ser mal interpretada ou mal vista. O que é importante dizer é que a eleição acabou. O que passou, passou. Agora é preciso unificar o país, buscar harmonia e paz. Não deve haver provocação de lado a lado. O Brasil precisa ter tranquilidade para crescer de tal forma que a renda seja distribuída de maneira mais equitativa. É isso que importa. Quem apoiou quem, quem deixou de apoiar esse ou aquele, não interessa, já pertence ao passado. Vamos olhar para o futuro.